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terça-feira, 20 de março de 2018

Amigo urso


Corria há pouco nas redes sociais (não sigo o bom exemplo do Hélio Schwartsman e perco muito do meu tempo nelas) debate acerca da natureza do nazismo: seria este um regime de direita ou de esquerda? Tratava-se, porém, de pergunta tão estúpida (os comunistas alemães da época poderiam respondê-la sem dificuldade, caso não tivessem sido massacrados pelos nazistas) que não desperdicei minha atenção com aquilo.

Ainda sim, a discussão em si levanta uma questão interessante. Não falta quem primeiro defina sua posição no espectro político (“direita” ou “esquerda”) e, a partir daí, decida o que apoiar no campo das escolhas: pró ou contra o aborto, liberalização das drogas, ensino do criacionismo, etc.

Esta postura me parece ser ainda mais estúpida do que o debate anterior: a escolha do que ser acreditamos ser certo ou errado é que caracteriza nosso posicionamento político, não o contrário.

Isto pode parecer um tanto abstrato, mas ficará, creio, mais claro se imaginarmos apenas duas dimensões de escolha: no campo dos costumes e no campo econômico. Para manter as coisas simples, definamos dois tipos de indivíduos no que diz respeito aos costumes: pode ser um “careta” ou um “porraloca”. Da mesma forma, suponhamos também dois tipos de pessoas no que se refere às suas preferências acerca da política econômica: “liberais” e “quermesseiros”.

Há nuances, claro, mas quero crer que esses termos sejam suficientes para caracterizar as principais escolhas de política econômica, contra e favor de maior intervenção estatal, preferências sobre carga tributária e gasto público, integração comercial e financeira com o resto do mundo, etc.

Por mais que possa haver uma correlação positiva entre “caretas” e “liberais” (bem como entre “porralocas” e “quermesseiros”), deve ser óbvio que outras combinações não são apenas possíveis, mas também prováveis. E, se colocarmos outras dimensões de escolha, muitas outras combinações serão possíveis.

Isso dito, basta um mínimo de esforço de pesquisa histórica para notar que no Brasil, regimes que seriam inequivocamente considerados de “direita”, como, por exemplo, o governo Geisel (bom, sei lá: alguém pode começar a debater no Facebook se o velho general era, na verdade, um comunista enrustido), patrocinaram uma política econômica extraordinariamente intervencionista, marcada pelo dirigismo estatal, aumento do gasto público, bem como uma política agressiva de substituição de importações, de cujas consequências ainda não nos livramos inteiramente.

Também não é necessário ir muito longe para concluir que um político de “direita”, como Jair Bolsonaro compartilha de uma visão econômica muito próxima do geiselismo (aliás, Dilma Rousseff também), transparente em sua atuação parlamentar, declarações mercantilistas, restrição à participação de capital estrangeiro em eventuais privatizações, etc.

Sim, li as propostas do coordenador do seu programa econômico, mas num mundo em que mesmo nos EUA a pessoa que deveria supostamente conter os exageros do presidente renunciou precisamente por falhar na missão, só muita ingenuidade justificaria a crença que o domador é capaz de jantar o urso, quando toda experiência histórica sugere que quem costuma se dar bem é, advinhem, o urso…



(Publicado 21/Mar/2018)



Com o pé esquerdo


Obviamente não esperava que nada de bom pudesse vir da campanha de Ciro Gomes, velho conhecido de carnavais d’outrora. Ainda assim, devo confessar que me surpreendi com a entrevista do coordenador de seu programa econômico, Nelson Marconi, que conseguiu ser ainda mais desataviada do que imaginava possível, revelando que os “novo-neo-proto-paleo desenvolvimentistas (NNPPD)” compartilham da mesma aversão ao aprendizado que os responsáveis pela maior crise dos últimos trinta e tantos anos.

Deixando de lado, por falta de espaço, as propostas de política industrial e uso do BNDES (de novo!), começamos com a velha insistência nos poderes mágico-mediúnicos da taxa de câmbio, que, se “colocada” no ponto certo (entre R$ 3,80 e R$4,00/dólar, mas, caso o dólar suba para, digamos, R$ 3,50, passará para R$ 4,20, ou algo parecido), resolveria todos nossos problemas.

À parte o misterioso processo pelo qual se chega a número tão preciso, jamais compartilhado com quem é inteligente o suficiente para não fazer parte da seita, menciona-se casualmente que uma vez que o câmbio “chegue a essa faixa, é preciso mantê-lo lá”, ou seja, voltaríamos para o regime de taxas administradas de câmbio.

Não bastasse a triste experiência nacional com este regime no que diz respeito à saúde do balanço de pagamentos, é sabido que, sob ele, à política monetária cabe a manutenção da paridade, enquanto o fardo de controlar a inflação é transferido à política fiscal.

Mesmo se deixarmos de lado que, em caso de turbulência externa, as consequências sobre as taxas de juros podem ser precisamente as opostas às defendidas pelo pessoal NNPPD, esta proposta exige um ajuste fiscal muito mais duro do que o implicado pelo teto de gastos, que, se mantido, eliminaria o déficit primário em horizonte de 3 a 5 anos.

Os planos para o ajuste fiscal, contudo, são nebulosos, para dizer o mínimo. A ideia é passar um “pente fino” nas despesas, metáfora que – além de me ofender pessoalmente – repete os mesmos equívocos publicados por Marconi em artigo cometido na Folha em agosto de 2015.

Não me entendam mal: bem sei que há muita ineficiência e desperdício no setor público brasileiro, que devem mesmo ser corrigidos; mas sei também que nenhum economista adulto pode acreditar que eliminá-los chegaria perto do nível de ajuste hoje necessário.

Basta lembrar que em 2017 o governo federal gastou R$ 1,3 trilhão, quase 20% do PIB, dos quais a previdência (inclusive funcionários inativos e pensionistas) representou 11% do PIB, ou seja, 55% do total. Contar feijões enquanto se ignora a reforma previdenciária não chega sequer a ser um exercício em futilidade: é apenas um disparate.

A este respeito o máximo que Marconi propõe é um regime de capitalização, outra ideia que nenhum economista com mais de 18 anos tem o direito de aceitar, pois implicaria um custo de transição proibitivo. Abrir mão da receita previdenciária hoje resultaria num buraco adicional de R$ 375 bilhões/ano (5,7% do PIB) nas contas públicas. Haja feijão para contar...

O que se depreende, ao final da entrevista, é a crença que a Nova Matriz não falhou; só faltou aplicar seus princípios com mais afinco...

Como diziam de mim nos tempos em que jogava bola, ainda bem que estes a natureza marca.




(Publicado 14/Mar/2018)

terça-feira, 13 de março de 2018

The New Matrix reloaded


Há pelo menos duas ordens de desenvolvimentos negativos originárias da decisão de Donald Trump de elevar as tarifas de importação de aço e alumínio, com o objetivo declarado de proteger estes setores da concorrência internacional.

A primeira diz respeito aos efeitos sobre a própria economia americana. Apesar de quase 150 anos de pesquisa econômica sobre o comércio internacional, ainda há quem acredite nos benefícios do protecionismo, em geral apelando para possíveis impactos positivos sobre o emprego nos setores beneficiados (muito embora os espertalhões saibam muito bem que o efeito maior é sobre a distribuição de renda em favor de quem obteve a proteção requerida).

Ainda que medidas protecionistas possam beneficiar o setor privilegiado, não há dúvida que fazem estragos ainda maiores no restante da economia. A começar porque elevam os preços para consumidores, na prática transferindo renda a favor do setor protegido. Não se trata, porém, de um ganho de soma zero, mas sim de soma negativa.

De fato, além da redistribuição de renda, há também a redistribuição de recursos, de setores mais produtivos (os que prevaleciam antes da intervenção) para os menos produtivos (os agora protegidos). O resultado é redução da produtividade e, portanto, da renda da economia como um todo.

Este efeito não é pequeno: meus ex-professores, Jeff Frankel e David Romer, em artigo clássico, estimaram que cada ponto percentual a mais de abertura comercial (a soma de exportações e importações sobre o PIB) eleva a renda per capita em pelo menos meio ponto percentual.

No caso americano, em particular, dado que a economia opera praticamente em pleno-emprego, não há muito a ganhar em termos de postos de trabalho. Por outro lado, este tipo de medida aumenta (marginalmente, é verdade) as chances de aumentos adicionais de taxas de juros, já que pode pressionar salários.

Estes são, no entanto, danos autoinfligidos e, à parte o efeito sobre as taxas de juros, com repercussões limitadas para a economia global (obviamente maiores para os que exportam aço e alumínio para os EUA, entre eles o Brasil).

A outra ordem de problemas, potencialmente mais danosa, diz respeito às reações à iniciativa americana, no caso, a possibilidade de uma guerra comercial, expressa na elevação retaliatória de tarifas (ou outras barreiras ao comércio) por parte dos países diretamente afetados pelas medidas protecionistas. Não é demais lembrar que, dentre os efeitos que ajudaram a transformar a crise de 29 na Grande Depressão, figuram em lugar de honra as medidas de restrição ao comércio internacional (note-se que aqui não falamos de desvalorização da moeda, mas tarifas e outras barreiras).

Obviamente, elevar tarifas em retaliação também é danoso para quem o faz, mas, do ponto de vista de um jogo de várias rodadas, pode ser exatamente o requerido para convencer os demais de sua firmeza de propósito e induzi-los a reverter as medidas iniciais.

De qualquer forma, apesar da visível recuperação da economia global nos últimos anos, há fragilidades, principalmente no que diz respeito ao campo político. Ninguém precisa balançar o barco.

Quando a principal economia do mundo adota políticas semelhantes às patrocinadas pela Nova Matriz no Brasil devemos ficar muito preocupados.




(Publicado 7/Mar/2018)

terça-feira, 6 de março de 2018

A vida dos outros

A autonomia do Banco Central retornou à ribalta como parte da “Agenda 15”, um conjunto de medidas que o governo pretende tornar prioritárias agora que a reforma previdenciária foi definitivamente legada à próxima administração. Neste contexto voltou ao debate um possível mandato duplo para o BC, contemplando não apenas a meta para a inflação, mas também outra para desemprego. Trata-se de uma péssima ideia, apesar da aparente nobreza de propósito.

A destacar, em primeiro lugar, a diferença entre independência e autonomia no caso do BC. Embora ambas requeiram a fixação de mandatos para os dirigentes da instituição (tipicamente alternados com mandatos presidenciais), um BC independente pode escolher seus próprios objetivos, enquanto no segundo caso a liberdade da instituição se limita à decisão sobre os meios para atingir objetivos determinados pelo executivo.

Assim, por exemplo, o BC independente poderia determinar qual sua meta para a inflação, bem como tomar as decisões de política monetária que acredita corretas; no caso da autonomia, o executivo fixa a meta e o BC, à luz disto, determina a trajetória de taxas de juros consistente com o objetivo. A discussão no Brasil aponta para o segundo arranjo.

Imagine agora um BC autônomo a quem o executivo determina dois objetivos: uma meta para a inflação e outra para a taxa de desemprego, ainda que o BC tenha apenas um instrumento: a política monetária (a taxa Selic).

O problema é que há uma troca de curto prazo entre a inflação e desemprego, embora esta não persista no longo prazo. Caso o BC busque uma taxa de desemprego menor do que a consistente com a inflação na meta acabará fazendo com que esta se acelere.

A aceleração inesperada pode reduzir salários reais e induzir empresas a contratarem mais, reduzindo o desemprego, mas, à medida que a expectativa de inflação mais elevada se incorpora às demandas salariais, este efeito desaparece e, no fim da história, teremos apenas inflação mais alta, sem ganho persistente de desemprego. Pelo contrário, quando o BC tiver que trazer a inflação de volta à meta, haverá aumento de desemprego até que a inflação e as expectativas convirjam, como bem ilustrado pela nossa experiência recente.

Por outro lado, se o BC optar apenas pela meta de inflação, sua diretoria terá que lidar permanentemente com a ameaça de sanções por ignorar a outra perna do mandato. Não é difícil concluir que, sob tal cenário, a autonomia do BC ficaria comprometida.

Pode-se, claro, apontar para o arranjo institucional do Federal Reserve (Fed), cujo mandato abarca inflação, desemprego e taxas de juros (um triplo mandato) como contraexemplo.

Trata-se, porém, de um erro, porque o Fed é independente: apesar do mandato triplo, é ele quem determina seus objetivos. Em particular, há objetivo numérico apenas para a inflação, não para o desemprego, nem para taxas de juros, como expresso aqui: https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/files/FOMC_LongerRunGoals_20160126.pdf.


As práticas internacionalmente consagradas apontam para a inflação como o objetivo do BC. Em que pese a preferência nacional pelas jabuticabas, ao menos neste caso poderíamos tentar aprender com os erros dos outros, já que com os nossos não parecemos aprender jamais.



(Publicado 28/Abr/2018)