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terça-feira, 26 de julho de 2016

Independência ou sorte!

Amélia emprestou R$ 1 mil a Bento por um ano, cobrando 10% de juros, mas passou a ter dúvidas sobre sua capacidade de pagamento. Uma amiga, Cristina, lhe ofereceu então o seguinte negócio: caso Bento furasse, Cristina pagaria por ele; em troca da garantia, cobraria de cara 7% do valor do empréstimo, ou seja, R$ 70.

Assim, em caso de calote, Amélia receberia o valor do empréstimo (R$ 1 mil), menos o que pagou a Cristina, ficando com R$ 930; caso contrário, receberia o principal e juros, R$ 1.100, o que, deduzindo o pagamento da proteção, chegaria a R$ 1.030. Já Cristina receberia R$ 70, mas, se Bento aprontasse, teria que pagar R$ 1 mil para Amélia, amargando um prejuízo de R$ 930.

Parece um negócio ruim para Cristina, mas depende crucialmente da sua percepção da probabilidade de Bento dar o calote. Suponha que seja 5%. Neste caso ela ganharia R$ 70 com 95% de chance e perderia R$ 930 com 5% de chance, isto é, um ganho esperado de R$ 20 (0,95 x 70 - 0,05 x 930).

Na verdade, qualquer probabilidade de calote inferior a 7% traria ganhos esperados, enquanto qualquer probabilidade superior a 7% implicaria perdas esperadas. (Ignoramos, por simplicidade, qualquer avaliação de como Cristina lida com risco). Caso houvesse um mercado grande de amigos de Amélia dispostos a vender seguro contra o calote de Bento o valor cobrado refletiria a percepção de mercado sobre a chance de levar o cano, ou seja, sob concorrência o ganho esperado deverá ser zero.

Este mercado existe. Há quem venda proteção contra calotes de países e empresas, cobrando uma taxa por isto, que, conforme argumentado acima, reflete, entre outras coisas, a percepção do risco de não pagamento, por este motivo chamada de “prêmio de risco”.

Em particular, no final da semana passado o prêmio de risco do Brasil (para um período de cinco anos) caiu abaixo de 3% ao ano pela primeira vez desde agosto de 2015, depois de chegar a mais do que 5% em fevereiro deste ano. Houve, portanto, uma reavaliação considerável da percepção de risco da dívida brasileira, muito embora ainda permaneça bem mais alta do que a observada para países sérios da América Latina, como Chile, Colômbia, Peru, ou México.

Posto de outra forma, a avaliação predominante sugere que o problema ainda é grave, embora menos do que parecia ser no começo do ano. Em que pesem fatores globais, que ajudaram a maioria dos países, há razões para crer que a maior parte deste movimento resultou da mudança de política econômica por parte da nova administração, em especial o tratamento das contas públicas para reverter o aumento persistente da dívida relativamente ao PIB.

O governo promete retomar a trajetória de superávits primários a partir de 2019, de modo a atingir os valores necessários para este objetivo. O nó da questão, como notado por Samuel Pessôa, é que a atual estratégia, embora possa render frutos, requer disciplina por muitos anos, ao longo dos quais teremos que torcer para que o resto do mundo continue a demonstrar paciência com nossa abordagem gradualista.


Concretamente, sem medidas adicionais do lado do gasto, muito possivelmente a dívida só fará a inflexão após 2020-2022 (senão depois). Ou tratamos de avançar mais rápido, ou a sorte será a única alternativa que nos restará.



(Publicado 20/Jul/2016)

terça-feira, 19 de julho de 2016

Três cartas

Segundo antiga anedota, o recém-empossado presidente de empresa encontra três cartas deixadas por seu antecessor, com instruções para abri-las apenas em momentos de crise. Quando a crise estoura, ele recorre à primeira, que diz: “ponha a culpa em mim”. Tempos depois, nova crise e a segunda carta, recomendando a mudança de toda diretoria. Já na terceira vez aconselha: “escreva três cartas”.

A administração Temer abriu a primeira, reconhecendo que o déficit primário deste ano deve atingir R$ 170 bilhões (2,7% do PIB) e notando que, na ausência de medidas compensatórias, o déficit de 2017 superaria, com folga, a casa de R$ 200 bilhões (houve menção a um número de R$ 270 bilhões, mas me parece exagerado).

Medidas foram adotadas, trazendo o valor para R$ 194 bilhões, mas o ministro da Fazenda prometeu receitas extraordinárias, originadas de privatizações, concessões e outorgas (impressão minha, ou se tratam essencialmente de sinônimos?), da ordem de R$ 55 bilhões, o que lhe permitiu anunciar uma meta de déficit de R$ 139 bilhões (2,0% do PIB) para 2017.

Estes desenvolvimentos cabem, em larga medida, no escopo da primeira carta. Não é exagero atribuir a piora extraordinária das finanças públicas a ações e omissões do governo anterior, que, conforme o prometido, “fez o diabo” para se reeleger, não só aumentando gastos, mas também fugindo de reformas que pudessem evitar o problema antes que se tornasse, como se tornou, grande demais, fato apontado por muitos economistas com enorme antecedência.  A atual equipe econômica herdou terra arrasada no lado fiscal e nos esperam anos de reconstrução à frente.

No entanto, há questões que já pertencem ao atual governo. Por mais que se argumente que o aumento ao funcionalismo já havia sido acordado pela administração ora afastada e que se enquadraria na regra do teto das despesas, não há como concluir que gastar mais possa contribuir de qualquer forma para o ajuste das contas públicas. O mesmo cabe ao acordo com os estados, cujos efeitos serão nefastos.

Apesar disto, a meta de R$ 139 bilhões (de déficit!) foi vendida como vitória da equipe econômica sobre a “ala política” do governo, para quem até R$ 170 bilhões estava de bom tamanho (raciocínio equivalente a concluir que perder da Alemanha por 6x1 seria progresso face àquela inesquecível semifinal).

Não, não foi. O número que interessa é aquele sem as receitas extraordinárias que, diga-se, ninguém sabe de onde virão, ou seja, R$ 194 bilhões (2,9% do PIB). Há pouco espaço para cortes adicionais, é verdade, mas até agora não se viu da atual administração nenhuma medida que sinalizasse austeridade no presente; apenas uma (boa) promessa para o futuro.

Isto aponta para nova batalha em 2018. Mesmo que receitas extraordinárias se materializem em 2017 (um enorme “se”), partiremos de um déficit recorrente de R$ 194 bilhões no ano que vem. A menos que se possam conjurar novas receitas (sabe-se lá de onde), possivelmente veremos piora das contas fiscais para aquele ano, já pressupondo que o teto de despesas exista e seja operacional, mesmo porque se trata de ano eleitoral.

Temer corre o risco de ter que abrir a segunda carta ainda antes do momento constitucional de escrever as três cartas para seu sucessor.





(Publicado 13/Jul/2016)

terça-feira, 12 de julho de 2016

4ever

O título funcionaria melhor se a meta de inflação fosse 4%, mas o sentido deve ter ficado, espero, claro. Desde 2003, quando o Conselho Monetário Nacional determinou ao BC que buscasse manter a inflação em 4,5% a partir de 2005, a meta de inflação para o país tem sido fixada neste patamar e a reunião da semana passada não deixou por menos, mantendo o mesmo objetivo numérico para 2018, um recorde de 14 anos.

Num país em que tudo muda tão rápido, o apego à meta poderia até ser percebido como um elemento de permanência em meio à fúria, mas, não. Ao contrário, apesar da meta constante, o desempenho não poderia ter sido mais diferente. Entre 2005 e 2010, a inflação média atingiu 5,0% ao ano, pouco superior à meta; já de 2011 a 2015 bateu 7% ao ano, mais de dois pontos percentuais acima dela, uma atuação lamentável.

Neste sentido, é muito bem vinda a postura que o novo presidente do BC, Ilan Goldfajn, pretende imprimir à política monetária. Apesar de pressões para que adotasse uma “meta ajustada” para 2017, boa parte delas oriunda do mercado financeiro, que se posicionou agressivamente para o corte de juros nos próximos meses, Ilan indicou que o BC buscará atingir a meta no ano que vem, rompendo com a prática de Alexandre Pombini, para quem a inflação na meta era sempre algo para o futuro distante, de preferência distante o suficiente para que não o submetesse a constrangimentos como ter que trabalhar de verdade para chegar a tal objetivo.

A reação foi mais positiva do que o noticiado. A parte mais visível tem sido a revisão nas perspectivas para a inflação. De acordo com a pesquisa Focus, a inflação esperada para 2017, por muito tempo estabilizada em 5,5%, começou a cair, marcando 5,4% no começo desta semana; já as expectativas para 2018 caíram de 5,0% para 4,8%. Não me surpreenderia caso novas revisões para baixo viessem a ocorrer nas próximas semanas, em resposta à atitude mais séria do BC.

Menos comentado, porém potencialmente mais importante, houve uma mudança relevante em taxas de juros de diferentes prazos. Taxas referentes a períodos mais curtos subiram, refletindo a percepção de manutenção da Selic por mais tempo. Por outro lado, taxas de juros para períodos mais longos caíram acentuadamente, em resposta à queda das expectativas de inflação (e, portanto, corte mais acentuado da Selic no futuro).

Este movimento, ainda incipiente, tem consequências consideráveis para a recuperação da economia, pois taxas de juros mais longas costumam ter efeitos mais vigorosos sobre o investimento do que as mais curtas, dado que seu horizonte se aproxima mais do período associado à maturação do investimento.  Trata-se de uma verdade simples, mas por muito tempo ignorada no BC.

Não faltam, contudo, armadilhas.

Leitores mais atentos do Relatório Trimestral de Inflação, publicado na semana que passou, devem ter notado uma ausência de peso. O BC não indica se considera que a política fiscal ajudaria (ou atrapalharia) seus planos, ao contrário do que costumava fazer (ingenuamente, ou não, sempre apostando na melhora).


Vejo isto como sinal claro de desconforto da instituição. Sem o auxílio do ajuste fiscal, o BC ficará sozinho na luta e a convergência da inflação se tornará tarefa ainda mais complicada.




(Publicado 5/Jul/2016)

terça-feira, 5 de julho de 2016

Canário do Reino

Olhando do Brasil o resultado do plebiscito que pede a saída do Reino Unido (RU) da União Europeia (UE) parece algo remoto. A libra esterlina, no momento em que escrevo, perdeu 13% do seu valor face ao dólar desde o Brexit; já o real se desvalorizou em torno de 1,5%. Mesmo que pudéssemos atribuir todo o movimento da moeda ao evento traumático da semana passada, a conclusão inescapável é que o mercado financeiro local não deu maior importância ao acontecimento.

De fato, da perspectiva brasileira, os impactos parecem mesmo limitados. Pelo lado real da economia, o RU foi o destino de US$ 2,7 bilhões das exportações nacionais nos 12 meses terminados em maio, 1,4% do total exportado no período, pouco mais do que vendemos, por exemplo, para o Uruguai.

Por outro lado, embora ao menos em tese a “fuga para a qualidade” que se seguiu ao Brexit pudesse levar a um aumento da percepção de risco, na prática este efeito foi bastante limitado. Mantivemos a duvidosa honra de apresentar o risco-país na casa de 3-3,5% ao ano devido principalmente aos desenvolvimentos locais, em particular graças às dificuldades de ajustar as contas públicas.

Não se segue, porém, que devamos ignorar outras possíveis (e prováveis) consequências do Brexit. Por mais que se tente associar a decisão ao intervencionismo excessivo de Bruxelas (verdadeiro, aliás), me parece claro que o voto pela saída da UE não refletiu um impulso liberalizante, mas sim seu oposto.

A questão central no caso é o repúdio à livre circulação de trabalhadores no bloco, claramente exposta na questão da imigração. Uma piada local relatava que encanadores ingleses reclamavam da concorrência “desleal” de seus congêneres poloneses, que teriam o desplante de não apenas marcar visitas a seus clientes, mas – para horror local – efetivamente aparecer na hora marcada.

Isto não é um privilégio britânico. Por mais que a elite politica europeia tenha se empenhado em aprofundar a integração econômica do continente, sacudido por guerras sangrentas nos últimos séculos, a triste verdade, desnudada pela crise da Zona do Euro (um pedaço da UE), é que a população jamais comprou a ideia de uma união cada vez mais próxima (“ever closer union”), como expresso na Declaração Solene da UE.

Ao contrário, o que sobreviveu aos planos de integração e hoje se manifesta de forma crescente é um nacionalismo xenófobo, que não raro descamba para o racismo. A faceta mais visível do fenômeno no continente é a ascensão da Frente Nacional na França, personificada por Marine Le Pen, mas está longe de limitar a isto, encastelado nos governos da Hungria e Polônia, ganhando força na Holanda, Alemanha e outros países da UE, para não mencionarmos alguns aspectos da candidatura Trump nos EUA.

São forças que agem no sentido contrário da integração, frequentemente aliadas a seu antípoda ideológico, partidos de esquerda e sindicatos, temerosos desde sempre acerca dos efeitos da globalização.

Não há, portanto, como ignorar riscos políticos à expansão do comércio internacional e, por extensão, do próprio crescimento global. O Brasil faz parte desta engrenagem e depende como nunca de crescente integração para se recuperar da crise.


O Brexit é o canário na mina da globalização.

This canary is no more
 It has ceased to be. It's expired and gone to meet its maker. 
This is a late canary. It's a stiff. Bereft of life, it rests in peace. 
It's rung down the curtain and joined the choir invisible. 
This is an ex-canary...


(Publicado 29/Jun/2016)