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terça-feira, 27 de outubro de 2015

Barbeiro

Na semana passada discutimos “dominância fiscal”, situação na qual um governo incapaz de servir sua dívida levaria a inflação a fazer o serviço que ele não faz, isto é, adequar o valor da dívida àquilo que consegue realizar do ponto de vista de seus gastos e receitas.

Concluímos que, sob tais circunstâncias, o Banco Central perderia a capacidade de controlar a inflação, independentemente da política adotada. Deixaria, por assim dizer, o banco do motorista e iria para o do passageiro (alguns, mais críticos, sugerem que o BC terminaria o processo no bagageiro).

Se isto for verdade, há uma forma – um tanto imperfeita, mas fazer o quê? – de aferirmos se já nos encontramos em tal situação: basta avaliar as expectativas sobre o comportamento futuro da inflação. Caso já estejamos sofrendo esta síndrome, as expectativas deveriam revelar inflação crescente, movendo-se para longe da meta. Em particular, quanto mais distante o horizonte, tão mais altas deveriam ser as previsões inflacionárias.

Investigando em primeiro lugar as expectativas coletadas pelo BC por meio de sua pesquisa Focus, não encontramos este padrão. Estas permanecem acima da meta tanto para este ano (9,75%), como em 2016 (6,12%), 2017 (5,0%) e 2018 (4,7%), mas convergem para ela em 2019. Os desvios são elevados no horizonte mais curto, porém menores nos horizontes mais longos, precisamente o contrário do que se esperaria no caso de dominância fiscal.

Isto dito, há problemas óbvios. Como já argumentei em outras ocasiões, as expectativas coletadas pela Focus costumam ser otimistas, tipicamente projetando taxas de inflação mais baixas do que as que efetivamente se materializam, o que também nos levaria a conclusões otimistas acerca da dominância fiscal.

Há uma alternativa, porém. Podemos investigar a chamada “inflação implícita”, isto é, a diferença entre a taxa de juros de um título público sem correção inflacionária (NTN-F) e um título corrigido pela inflação (NTN-B) em prazos semelhantes. No caso, papéis que vencem em 2017 (NTN-F com rendimento de 15,3% aa e NTN-B com rendimento de inflação mais 6,2% aa) sugerem que a “inflação implícita” para aquele horizonte se encontraria na casa de 8,6% aa, bem mais alta do que o implicado pela Focus para o período até aquele ano.

Mesmo neste caso, porém, não parece haver uma crença de inflação crescente. Pelo contrário, para vencimentos mais longos as projeções implícitas de inflação revelam queda modesta, ainda que longe da meta, na casa de 7,5% aa.

É bem verdade que, pouco antes da desastrada divulgação da proposta orçamentária para o ano que vem, estes números eram mais baixos, na casa de 6-6,5% aa, mas, ainda assim, as apostas do mercado financeiro não parecem (ainda) sugerir um processo inflacionário totalmente descontrolado, como se esperaria numa situação de dominância fiscal.

Se nossa intepretação estiver correta, não se conclui que o país esteja imune ao problema; implica apenas que haveria ainda fé na nossa capacidade de voltar a uma política fiscal mais responsável em algum horizonte de tempo.


Neste caso, contudo, não se poderia inocentar o BC pela deterioração das expectativas inflacionárias. É ele ainda o motorista que tem nos levado a um caminho mais do que perigoso.

No banco do motorista


(Publicado 21/Out/2015)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Onde a civilização acaba

Samuel Pessoa já abordou a questão da “dominância fiscal” com a competência de sempre, mas acredito que ainda há o que dizer sobre o assunto, embora a conclusão seja a mesma. A expressão é algo esotérica, reconheço; refere-se, contudo, a um problema que encontramos no nosso dia-a-dia, não apenas aplicado a governos, mas também a famílias ou empresas, a saber, a incapacidade de pagar suas dívidas.

Para ilustrar o tema, peço ao leitor que imagine um mundo muito simples, em que pessoas, empresas ou governos vivem por apenas dois períodos: “hoje” e “amanhã”. Imagine também um governo que “hoje” arrecada $ 100, mas gasta $ 110 e, portanto, se endivida em $ 10, prometendo pagar este valor de volta “amanhã”, acrescido de juros de 10%. No caso, isto significa que “amanhã” a diferença entre o que o governo arrecada e o que gasta tem que somar $ 11; $10 para pagar de volta o principal e $ 1 a título de juros.

Para simplificar a exposição, vamos supor também que “hoje” já sabemos se “amanhã” o governo conseguirá (ou não) economizar os $ 11 necessários para pagar sua dívida. Caso se saiba que o governo tem esta capacidade, a vida segue.

O caso interessante, porém, é o oposto, quando sabemos que isto não será possível, por exemplo, que o governo só conseguirá guardar $5,50 (metade do necessário). Isto significa que, dada a taxa de juros de 10%, a dívida, inicialmente de $ 10, só pode valer $ 5, pois apenas com uma dívida deste valor e juros de $ 0,50 (10% de $5) o governo seria capaz de servi-la. Isto é, nas condições acima, o valor da dívida teria que cair à metade.

Há duas formas de fazê-lo: ou cortamos seu valor de face à metade (calote, em bom português), ou todos os preços desta economia dobram para fazer com que a dívida, que inicialmente poderia ser trocada por uma cesta de produtos no valor de $ 10, agora só possa ser trocada por uma cesta de produtos que vale $ 5.

Em outras palavras, sob “dominância fiscal”, a inflação (o calote que não ousa dizer seu nome) fará o serviço que o governo não consegue fazer.

Notem que, em momento algum, menciona-se o banco central e suas estratégias para tentar controlar a inflação. O motivo é simples: nas circunstâncias acima a autoridade monetária não tem instrumentos para contê-la. Pode subir a taxa de juros, fixar a taxa de câmbio, ou congelar a oferta de moeda. Qualquer uma destas abordagens esbarra numa restrição inexorável: o governo não tem como pagar sua dívida e, portanto, o valor dela terá que cair.

Obviamente, no mundo real nem o tempo se divide em “hoje” e “amanhã”, nem temos como saber se, daqui a alguns anos, as condições mudarão o suficiente para fazer com que as contas de um determinado governo, agora deficitárias, se transformem em superavitárias.

É muito mais difícil, portanto, determinarmos se, na prática, o Brasil já vive uma situação de dominância fiscal, embora os riscos sejam crescentes.


Isto dito, uma coisa é clara: se não houver uma sinalização consistente do mundo político acerca de uma melhora das contas públicas num horizonte razoável, sem se prender apenas ao orçamento de 2016, a inflação haverá de subir. O conflito fiscal não mais se resolverá de forma civilizada, pelo parlamento, mas na forma bruta da inflação descontrolada.



(Publicado 14/Out/2015)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Quem quer ser um bilionário?

Segundo dados do BC, as perdas associadas às vendas de dólares no mercado futuro (swaps) atingiram quase R$ 110 bilhões nos 12 meses terminados em agosto e devem subir ainda mais quando os números de setembro forem contabilizados. Como as perdas são adicionadas à conta de juros (assim como ganhos seriam dela subtraídos), esta atingiu 8,5% do PIB no período; não fossem, portanto, os swaps, ela teria ficado em 6,5% do PIB.

O BC argumenta, porém, que há uma assimetria: as perdas com os swaps são contabilizadas, mas não os ganhos com as reservas. Como estas últimas se encontram ao redor de US$ 370 bilhões contra pouco mais de US$ 100 bilhões em swaps, os ganhos com reservas superam por larga margem as perdas e, no balanço final, haveria lucro, não prejuízo.

Do ponto de vista contábil o BC pode até estar certo, mas não se encararmos a operação como se deve, isto é, da perspectiva econômica, focada na avaliação da política de intervenção do BC de 2013 para cá.

O que foi à época justificado como medida para moderar a volatilidade causada pelos sinais de uma possível alteração na política monetária americana sobreviveu em muito àquele fenômeno. De meados de 2013 ao início de 2015 o BC vendeu US$ 114 bilhões no mercado futuro, numa tentativa clara (e frustrada) de impedir a depreciação do real face ao dólar, e assim tentar conter a inflação, como instrumento substituto para a política monetária.

Tivesse, portanto, o BC se abstido da intervenção (ou fizesse realmente uma política pontual, para moderar de fato a volatilidade), ele continuaria obtendo ganhos sobre as reservas (mesmo que não sejam diretamente contabilizados), mas não teria realizado o prejuízo com os swaps.

A análise da política adotada em 2013, venda sem limites de dólares futuros, sugere que esta causou a perda acima registrada. Ao BC caberia argumentar que talvez tenha evitado perdas em outras frentes econômicas (é duvidoso, porém, ao menos, intelectualmente plausível), mas jamais apontar para o ganho sobre as reservas como desculpa. Isto equivale a vender um terço de uma fazenda antes do preço dela subir e argumentar que o ganho dos dois terços restantes compensaria a perda...

Não se trata de uma discussão à-toa. A desvalorização recente do real tem motivado novos pedidos de intervenção por parte do BC, usando agora as reservas internacionais, e não mais apenas por meio dos swaps.

Ocorre que o encarecimento do dólar não se dá no vácuo. Entre o final de agosto, pouco antes da divulgação desastrada do orçamento deficitário para 2016, e o final de setembro o risco-país (o tanto a mais de juros que o devedor de má reputação tem que pagar relativamente ao melhor devedor) se encontrava na casa de 3% ao ano. De lá para cá subiu para 5% ao ano, níveis que havíamos visto pela última vez no terceiro trimestre de 2004 (à parte um breve período durante a crise internacional de 2008).

Este, dentre os vários fatores que têm impulsionado a escalada do dólar, parece ser atualmente o principal, fenômeno reconhecido inclusive pelo BC.


Neste contexto, a intervenção do BC será incapaz de evitar, exceto por breve período, a perda de valor da moeda, gerando novos prejuízos à frente. Parece que a lição de 2013-2014 ainda não foi aprendida.

Vendo mais; tem problema não...

(Publicado 7/Out/2015)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Chame o ladrão

Flagrado, o larápio esperto apela para o tradicional berro de “Pega ladrão!”, na esperança de se safar no meio da confusão, deixando que outro pague pelo seu crime. A mesma ética exemplar pode ser encontrada na tentativa recente de economistas vinculados ao PT de atribuir as atuais dificuldades enfrentadas pelo país à suposta austeridade fiscal, deixando de lado sua responsabilidade pelas políticas que, ao final das contas, jogaram o país na crise.

Segundo este pessoal, nada justificaria a reversão da política econômica adotada a partir deste ano. A que propõem, portanto, é essencialmente a mesma que guiou o país no primeiro governo Dilma: expansão do gasto, redução na marra da taxa de juros e intervenção pesada do governo no domínio econômico. Não por acaso, muitos dos autores da atual proposta são os mesmos que manifestaram apoio à reeleição da presidente no ano passado, embora tenham tentado se passar por críticos da política econômica quando a coisa ficou feia.

Aparentemente, inflação superior a 6% ao ano, mesmo com preços reprimidos, não seria motivo de preocupação. Nem, é claro, um déficit externo que superou US$ 100 bilhões no ano passado, e muito menos o virtual desparecimento do superávit primário do setor público, que por muitos anos havia se mantido na casa de 3% do PIB, mas que em 2014 se transformou num déficit (oficial) de 0,6% do PIB, enquanto estimativas de especialistas sugerem que, descontadas as “pedaladas”, o número verdadeiro teria se aproximado de 1,5% do PIB. Da mesma forma o crescimento da dívida pública de quase 10 pontos percentuais entre 2010 e 2014 não mereceria qualquer reparo.

Deixa-se convenientemente de lado o fracasso do crescimento no período, quando o PIB se expandiu a pouco mais de 2% ao ano, atribuído à “crise internacional”, muito embora o crescimento mundial tenha se mantido praticamente inalterado (3,6% ao ano) e a relação entre os preços das exportações e importações brasileiras tenha sido simplesmente o mais favorável desde 1978, pelo menos.

A verdade que os punguistas econômicos querem esquecer é que as políticas que defenderam então, e que agora pedem de volta, colocaram o país numa situação insustentável. Sua manutenção poderia até adiar o encontro com a realidade por mais um ano ou dois, mas apenas à custa do aprofundamento das distorções que se acumularam nos últimos anos: inflação mais alta, dívida em crescimento e déficits externos ainda maiores.

Note-se que isto provavelmente não conseguiria impedir a recessão. De fato, como notado pelos economistas que fazem parte do Comitê de Datação de Ciclos Econômicos, a recessão se iniciou em meados do ano passado, muito antes de qualquer discussão sobre a possibilidade de alteração da tal Nova Matriz Macroeconômica.

Em particular, o investimento, variável-chave para o crescimento sustentável, vem em queda desde 2013, e acumulava retração de quase 8,5% quando os punguistas louvavam a política em vigor.


O que eles hoje recomendam é exatamente o que nos trouxe à situação lastimável em que estamos. Confesso que, apesar disto, meu lado cruel adoraria tê-los de volta no comando da política econômica. Seria péssimo para o país, mas divertidíssimo vê-los chamando o ladrão quando o caos se instalasse de vez.

2011-2014

(Publicado 30/Set/2015)