Vender reservas para pagar a dívida não é
solução. Embora elevadas, são ainda insuficientes para mudar o jogo. Além
disso, seu efeito é temporário: sem medidas de ajuste, a dívida voltaria a
crescer. É uma discussão acessória, enquanto o problema principal segue se
deteriorando.
Parece fazer sentido. Como o rendimento sobre as reservas (em moeda estrangeira) é baixo, por força das reduzidas taxas de juros no mundo desenvolvido e, mesmo com a Selic em seu menor patamar da história, o custo da dívida doméstica é bem mais alto, a venda das reservas poderia dar certo alívio para o endividamento. Mal comparando, é como se pudéssemos vender os dólares que sobraram da última viagem ao exterior (faz tempo!) para, com o reais assim obtidos, pagar um pedaço do que devemos no crediário.
Apesar das aparências, eu vejo ao menos dois problemas com a proposição. O mais imediato é que o efeito de medidas nesse campo é bem menor do que uma olhada rápida poderia sugerir.
A começar porque, muito embora o volume total de reservas atinja algo como US$ 355 bilhões segundo os dados mais recentes (relativos a novembro), já houve um adiantamento do ponto de vista de venda de reservas para abater a dívida.
Com efeito, o Banco Central vendeu US$ 59 bilhões de “swaps” cambiais. A operação de “swap” representa uma troca: no caso o BC paga ao seu detentor o equivalente à variação cambial, enquanto aquele paga ao BC o CDI acumulado no período (na prática, quase a Selic). Assim, tudo se passa como se o BC já tivesse vendido reservas (abrindo mão, portanto, da variação cambial) e reduzindo suas operações compromissadas, deixando de pagar (aproximadamente) a Selic sobre elas.
Temos, portanto, que descontar os “swaps” das reservas, o que nos deixa com um volume ainda expressivo de US$ 296 bilhões de reservas líquidas desses instrumentos, que, convertidos em reais, representam perto de R$ 1,7 trilhão, um bocado de dinheiro.
Ocorre que a dívida do governo é um bocado bem maior: em setembro, quase um par de meses atrás, equivalia a R$ R$ 6,5 trilhões. Naquele momento as reservas líquidas (US$ 298 bilhões no mês) representavam, portanto, pouco mais de um quarto da dívida do governo.
Há, além disso, que levar em conta que, obviamente, não é boa política “queimar” as reservas, ainda mais em tempo de enorme volatilidade em mercados internacionais. É necessário manter reservas num nível que proteja o país em caso de paradas súbitas nos fluxos de capitais, como observamos no período de março a maio desse ano, por exemplo, quando houve saídas expressivas de investimentos externos: perto de US$ 12 bilhões no mercado acionário, US$ 20 bilhões em títulos negociados no mercado doméstico e US$ 8,5 bilhões em títulos de curto prazo negociados no mercado internacional.
Note-se que as saídas teriam sido provavelmente ainda maiores do que os US$ 40 bilhões registrados no período caso as reservas fossem muito baixas, porque o receio de falta de dólares realimentaria o processo.
Não está claro ainda qual o nível “ótimo” de reservas. O FMI estima em torno de US$ 240 bilhões para o Brasil (a Instituição Fiscal Independente tem estimativa similar), mas, mesmo que pudéssemos passar com algo menos, digamos, US$ 200 bilhões, o espaço para venda de reservas seria algo inferior a US$ 100 bilhões hoje, ou seja, pouco menos de 10% da dívida bruta, conforme ilustrado no gráfico abaixo.
Fonte: Autor (com dados do BC)
É verdade que um dólar mais caro faria aumentar as proporções acima calculadas. Ainda assim, cabe a pergunta: qual o nível do dólar que permitiria ao governo “zerar” sua dívida por meio da venda (total) das reservas líquidas? A conta não é difícil e sugere que precisaríamos do dólar na casa de R$ 21-22 para zerar a dívida; se o objetivo for reduzi-la à metade, então algo na casa de R$ 10-11 faria o truque. Usando apenas a parcela excedente das reservas sobre o “ótimo” os números são ainda maiores. Em outras palavras, trata-se de mato de onde dificilmente sairá qualquer coelho.
Vale dizer, a venda de reservas como estratégia de redução da dívida, embora possível, dificilmente mudaria dramaticamente o jogo.
Já o segundo problema refere-se à natureza finita das reservas. Só podemos fazer a “mágica” uma única vez; isto é, mesmo que fosse possível abater parcela significativa da dívida (contrariamente ao indicado pela análise anterior), se não mudarmos a dinâmica de endividamento por meio de um ajuste fiscal considerável, cedo ou tarde voltaríamos à mesma posição em que estamos hoje, mas sem reservas excedentes.
Não há “bala de prata” para a trajetória de endividamento crescente do país. Só sairemos dela de forma saudável se fizermos os esforços necessários, aprovando reformas que reduzam o peso dos gastos obrigatórios sobre o orçamento e dotando as administrações federal, estadual e municipal de instrumentos que permitam conter a tendência de elevação persistente desses gastos que vem de décadas.
Sem isso, toda e qualquer mágica que se possa cogitar conseguirá, no máximo, ganhar tempo, o mesmo tempo que desperdiçamos discutindo o acessório enquanto o essencial continua a se deteriorar a olhos vistos.
(Publicado 25/11/2020)
2 comentários:
Dessa tua esplanação guarda analogia com de um dito popularesco, a saber:"vender-se do almoço pra se adquirir da janta". E essa tua 'bala de prata' aí também está me recordando do 'Colloridão' (...) tal qual como daquele "tiro de canhão dele"(o confisco dos haveres financeiros de 1990, então 'guardados' junto ao M5 da 'Dona Zélia' da 'picaretagem'). Os 'verdes', penso Eu, são da nossa 'apólice de seguros' (...) do 'prêmio de risco' que carregamos pra que possamos nos acobertarmos de um eventual 'super-incêndio' (...) e é fato que dos focos já estão fumegando pra tudo que é lado. Aqui e, principalmente, lá fora! E você aí sabe que colocar-se dos 'verdes' pra fora (e Eu estou falando do 'excesso') nada resolve! Ainda sim, vocês querem comer das 'apolices' no jantar! Essas 'apolices' estão (estavam) lá, juntamente, porque quem as colocou previamente sabia de algo que, até agora, vocês desconhecem (...) nesse afã de 'moeda plenamente conversível' que 'geral absorveu' dentro dessas merdas de manuais estrangeiros --- ôps, baixou-me aqui e agora o espirito da 'velha maluca' da UFRJ-Unicamp! Mas você sabe perfeitamente que o 'prêmio atuarial' que pagamos por essas apólices não é 'justo': a diferença está (estava) acobertando daquilo que vocês todavia não sabem precificar! E a moral: a 'Banânia' lascou-se de vez agora (...) o 'Seu Guedes' da 'picaretagem' está vendendo das nossas 'apólices' pra pagar-se 'arroz-feijão'.
(Off-topic)
Alex,
Uma perguntinha acerca da sua opinião sobre os regimes de meta de PIB Nominal e meta de nível de preços. Você seria à favor desses regimes, na comparação direta com metas de inflação?
A impressão que me dá é que metas de inflação tem um problema em períodos de recuperação, e que o BC deveria tolerar a inflação um pouco acima da meta momentaneamente.
Pensemos na economia brasileira pré-pandemia, se a curva de oferta agregada é positivamente inclinada dado um nível de expectativas (a meta), a expansão monetária vai afetar tanto a inflação quanto o produto. Às vezes fico com a impressão de que com IT, se mirar muito severamente na meta, apenas uma curva de oferta agregada horizontal seria capaz de entregar a recuperação total sem que o BC aborte a recuperação antes da hora.
Como você faz para separar o quanto da sensibilidade da inflação aponta a chegada de uma curva de oferta bastante inclinada, e portanto a chegada ao produto potencial, do quanto ela reflete uma curva pouco inclinada, e portanto ainda com bastante espaço para a recuperação? Entendo que haja considerações de oferta, na linha meio que de histerese. Há a quebra de muitas firmas, recolocar os trabalhadores na ativa envolve um problema de matching que não é tão simples e rápido, talvez haja uma realocação de setores, etc, e portanto o produto potencial não é o mesmo pré-crise.
Existe uma boa maneira de distinguir essas duas situações.
Abs, Zamba
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