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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Rifando o jantar

A proposta de financiar transferências de renda desviando recursos de precatórios e da educação revela os limites já muito claros do compromisso do governo com o equilíbrio fiscal. Querem rifar o jantar para pagar o almoço.

Como colunista de economia sou imensamente agradecido por viver no Brasil. Não foram poucas as vezes que a inspiração não andava lá essas coisas e, de repente, aparece do nada uma bobagem de grandes proporções bem quando eu (certamente não o país) mais precisava dela.

Falo, no caso, da proposta – provavelmente o proverbial balão de ensaio – de “financiar” o novo programa de transferência de renda por meio do não pagamento de precatórios e do desvio de parte dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), uma tentativa para lá de canhestra no sentido de violar o teto de gastos, digna do saudoso (#sqn) Arno Augustin, o Rei das Pedaladas.

Começo do começo. A popularidade do presidente subiu com o pagamento do coronavoucher, que nos custa a bagatela de R$ 50 bilhões/mês, já deduzida a migração de quem recebia o Bolsa-Família para o auxílio-emergencial.

Tal volume é simplesmente insustentável: se mantido por 12 meses implicaria desembolso de R$ 600 bilhões, um tanto inferior à maior despesa do governo federal, benefícios previdenciários do INSS (R$ 700 bilhões nos últimos 12 meses). Para fins de comparação, o gasto primário do governo federal no ano passado atingiu R$ 1,44 trilhão, ou seja, a manutenção desse programa implicaria elevação permanente de mais de 40% nas despesas federais, ou pouco mais de 8% do PIB.

Cria-se, assim, um claro conflito. De olho em 2022, o presidente bem que gostaria de manter o programa, mas, como o insustentável raras vezes se sustenta, tem que se contentar com algo menor, mas que ainda possa ser visto como sua marca na área social. Daí a ideia da Renda Cidadã, essencialmente um Bolsa-Família turbinado.

Enquanto o gasto associado ao Bolsa-Família está orçado em R$ 35 bilhões no ano que vem, o Renda Cidadã, nas palavras do relator do orçamento, senador Marcio Bittar, custaria algo como R$ 30 bilhões a mais, ou seja, R$ 65 bilhões (0,9% do PIB).

O problema é fazer caber R$ 30 bilhões a mais no orçamento, cujo limite, dado pelo teto de gasto, é de R$ 1,52 trilhão. Isso representa cerca de 2% do dispêndio total e, idealmente, bastaria remanejar outras despesas, mas, como se sabe, o orçamento brasileiro é extraordinariamente rígido.

Segundo a lei orçamentária encaminhada há cerca de um mês, os benefícios previdenciários somariam R$ 704 bilhões, a folha de pagamentos da União R$ 337 bilhões, enquanto as demais despesas obrigatórias (com e sem controle do fluxo de desembolsos pelo Tesouro) chegariam a R$ 366 bilhões. Em outras palavras, o conjunto das despesas obrigatórias representa R$ 1,41 trilhão (93% da despesa total); sobram apenas R$ 109 bilhões para as despesas ditas “discricionárias”, incluindo todos os investimentos federais, muito próximo ao limite mínimo para o funcionamento do governo e insuficiente para repor sequer a depreciação do capital público.

Em outras palavras, não há como fazer caber um aumento de R$ 30 bilhões mantidas as regras atuais, ou melhor, não há como fazê-lo num mundo sem mágicas contábeis, mas, felizmente, trata-se de assunto para o qual não faltam prestidigitadores.

Há dentre os gastos da União parcela reservada para o pagamento de precatórios, equivalente a R$ 55 bilhões. Precatórios representam uma dívida do poder público para com os cidadãos derivada de uma condenação em processo judicial. A proposta do relator é limitar o pagamento de precatórios a 2% da receita corrente líquida do governo, o que desviaria perto de R$ 25 bilhões para o Renda Cidadã.

Como bem lembrou meu amigo, Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro, não se trata apenas de pedalada, mas puro e simples calote. Se me permitem a comparação, equivale a não pagar a pensão alimentícia dos filhos para gastar com o novo amor.

Já o Fundeb não é limitado pelo teto de gastos. A própria emenda constitucional 95, que criou esta restrição, deixou esses recursos de fora, já que serviriam para financiar a educação básica.

Ademais, há também cerca de um mês, a emenda constitucional 108 elevou o valor das transferências do governo federal para o Fundeb de 10% para 23% do total entre 2021 e 2026 (em 2021, por exemplo, será de 12%). Assim, as transferências da União, que atingiram R$ 15,6 bilhões em 2019, devem subir para perto de R$ 20 bilhões no ano que vem.

Segundo o relator, contudo, ao invés de transferir estes recursos para estados e municípios financiarem gastos em educação, parte deles seria desviada para o novo programa.

É, de fato, curioso: houve originalmente aumento das despesas que não contam para o teto de gastos, originalmente vinculado à educação; agora se propõe que tais despesas sejam orientadas para outro fim.

Este episódio desde logo nos traz uma lição importante, sempre ignorada pelos que defendem um teto mais “flexível”, retirando dele despesas (investimentos, gastos sociais, etc.) supostamente nobres: qualquer exceção a qualquer regra fiscal, não importa quão minúsculo seja seu tamanho original, será sempre devidamente aproveitada para passar uma boiada onde antes mal se espremia um bezerro. 

Foi exatamente o que ocorreu com as “pedaladas” de Dilma-Mantega-Augustin, em particular os adiantamentos de bancos oficiais para o Bolsa-Família, previdência e seguro-desemprego, e não há motivo para imaginar nada diferente toda vez que exceções forem criadas.

Isto dito, caso a proposta prospere, fica nítida a cada dia a falta de comprometimento do governo com o equilíbrio das contas públicas. Independentemente de emendas constitucionais que possam dar amparo legal às novas pedaladas, gastos adicionais seguirão se transformando em endividamento adicional, adiando ainda mais o processo de estabilização da dívida, que, vamos falar a verdade, requer dose de credulidade além de qualquer medida a esta altura do campeonato.

Ao contrário, o que vemos é crescimento ininterrupto da dívida, processo que cedo ou tarde – em geral mais cedo do que mais tarde – termina em sangue, suor e, principalmente, lágrimas.

Enquanto isso as taxas de juros requeridas para rolar a dívida crescem, apesar das garantias de keynesianos de quermesse que as taxas de juros nada têm a ver com os desequilíbrios fiscais.

E o ministro da Economia jura que quer implantar um programa social-liberal...



(Publicado 29/Set/2020)

terça-feira, 29 de setembro de 2020

No colchão

O volume de papel-moeda em poder do público saltou com o auxílio-emergencial, pois a população atendida tem pouco acesso a serviços bancários. Os dados sugerem que boa parte dessas transferências foi poupada, consistente com uma recuperação modesta da atividade econômica.

Confesso que não sou muito fã de agregados monetários (base, M1, M2, etc.) e, para ser absolutamente sincero, nem costumo segui-los. Num mundo em que o instrumento de política monetária é (tipicamente) a taxa básica de juros, como a Selic, ou a Fed Funds, os agregados têm pouco a dizer sobre a postura dos BCs.

No entanto, houve um desenvolvimento curioso nos últimos meses, na verdade a partir do segundo trimestre deste ano: o volume de papel-moeda em poder do público subiu consideravelmente, conforme ilustrado pelo gráfico abaixo.

Fonte: Autor (com dados do BC e IBGE)

Os valores já estão corrigidos pela inflação e ajustados à sazonalidade (normalmente há picos no final de cada ano). Estimei, além disto, a tendência de janeiro de 2002 a dezembro de 2019, extrapolada para os primeiros 8 meses deste ano. Como se vê, após anos de virtual estabilidade (ao redor de R$ 200 bilhões), o volume de papel-moeda em poder do público saltou bruscamente e em agosto se encontrava, em termos dessazonalizados, em R$ 293 bilhões (o dado observado no mês era R$ 286 bilhões).


Não,
não pretendo alertar sobre perigos inflacionários iminentes, mas sim notar uma faceta pouco explorada do auxílio emergencial criado pelo Congresso. Essa transferência se destina principalmente à parcela mais pobre da população, justamente aquela com menor acesso a serviços bancários, e que, portanto, acaba usando o dinheiro em espécie tanto para suas compras (porque não tem conta corrente), como para carregar esses recursos ao longo do tempo (porque não acessa produtos bancários).

Entre abril e julho, último dado oficial disponível, as transferências, já considerada a migração do Bolsa-Família para o auxílio emergencial, atingiram liquidamente R$ 196 bilhões (R$ 49 bilhões/mês). Já o estoque de papel-moeda em poder do público aumentou em R$ 66 bilhões no mesmo período (R$ 73 bilhões se incluirmos os números de agosto). Acredito que isto nos dê uma medida de quanto foi poupado do auxílio emergencial.

De fato, me parece provável que a maior parte dos recursos gastos no período, originalmente na forma de papel-moeda, já tenha se transformado em depósitos, pois quem recebe estes recursos costuma ter conta em banco. Supermercados, lojas de material de construção, farmácias e postos de gasolina (todos setores do varejo que já retomaram os níveis de vendas de fevereiro) recebem pagamentos em papel-moeda, mas o convertem em depósitos, por motivos tanto de segurança como conveniência.

Isso obviamente não é verdade em 100% dos casos, mas, como regra, o aumento do estoque de papel-moeda no período deve refletir em larga medida recursos que ainda não foram gastos pelas famílias beneficiadas com o auxílio. Parece haver, assim, um “colchão” de liquidez que deve ajudar o consumo mesmo quando o auxílio for reduzido nos próximos meses e eliminado até o final do ano.

Dificilmente irá repor, é verdade, o volume do auxílio (que, anualizado, rodaria pouco abaixo de R$ 600 bilhões, ou 8,2% do PIB), mas deve moderar o impacto do fim do programa, em linha com a visão de uma economia em recuperação, embora lenta, a partir do final de 2020, voltando aos níveis pré-crise apenas em meados de 2021.



(Publicado 23/Set/2020)

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Ladeira da memória

A alta dos preços de alimentos, em particular do arroz, é pretexto para péssimas recomendações de política, provando que nada aprendemos de casos similares ocorridos há pouco. Interferir no funcionamento dos preços é receita segura para prolongar um problema que se resolveria naturalmente.

As manchetes dos cadernos de economia estão tomadas pelo aumento do preço do arroz, motivando, entre outros, o filantropo, ex-senador, e atual vereador, Eduardo Suplicy, a recomendar o consumo de arroz integral do MST, apenas 66% acima do preço a que o mesmo produto pode ser achado na prateleira de um grande supermercado, manifestação tocante de sua proximidade à vida do povo tão sofrido.

Ocorre que o ex-senador (e ex-economista) não é o único a oferecer péssimas soluções para o problema; ao contrário, num amplo espectro, que cobre de oportunistas de sempre a incapazes econômicos, não faltam os dispostos a dar pitacos que só fariam piorar a questão.

O curioso termos passado por algo semelhante há pouco, embora a epidemia faça qualquer fato anterior a março parecer originário de um passado remoto. De qualquer forma, no final do ano passado houve forte aumento no preço da carne. Segundo os dados do IPCA, as carnes, em média, ficaram quase 28% mais caras em novembro e dezembro de 2019, principal contribuição para o índice de inflação no período, que atingiu 0,51% e 1,15% naqueles meses. No primeiro trimestre deste ano, contudo, caíram pouco menos de 8%, ainda antes da epidemia.

Então, como agora, preços internacionais mais elevados explicavam muito do fenômeno; da mesma forma, já havia quem defendesse a intervenção no mercado, afirmando ser “inadmissível que a nossa produção interna de gado esteja indo para fora enquanto aqui os preços se elevam” e pedindo senão “um tabelamento (...), uma taxação sobre as exportações”. Só diferente do atual momento por não haver à época, até onde sei, um ex-senador sugerindo o consumo de filé mignon produzido pelo MST.

A esta altura do campeonato já deveria estar claro que interferências no mecanismo de preço, seja pelo tabelamento (veja o caso argentino), seja por meio de tributação, não dão conta do problema. Preços são o elemento central de coordenação numa economia de mercado: quando sobem desestimulam o consumo e incentivam o aumento da produção; em queda produzem o efeito oposto. Em ambos os casos, não apenas garantem que os planos de consumo e produção sejam compatíveis, mas principalmente possibilitam ao produtor readequar seus planos.

No caso do arroz, ainda que não imediatamente, levará ao aumento da área plantada e da oferta. Se não deixarmos que tal mecanismo funcione destruiremos o incentivo para expansão da produção, fato que Deng Xiao Ping redescobriu apenas aos 75 anos, quando permitiu que agricultores pudessem vender seu excedente a preços de mercado, iniciando timidamente a revolução que trouxe a China ao seu atual patamar depois de 30 anos de coletivização. Da mesma forma que ocorrido com a carne, os preços não se sustentarão no patamar atual.

Isto dito, o IPCA de 2020 pode ficar algo mais alto (1,8-1,9%) do que se esperava há algumas semanas (1,6-1,7%), mas ainda muito abaixo da meta para o ano (4,5%). Mesmo, porém, que não fosse o caso, só haveria razão para preocupação se houvesse sinais de contaminação dos demais preços pela elevação do preço do arroz, o que, em economês castiço, chamamos de “efeitos secundários”.

Não parece ser o caso. Mesmo com o aumento de preços de alimentos em geral (não só o arroz), as expectativas para o IPCA nos próximos anos, incluindo crucialmente 2021, permanecem na meta (2022) ou abaixo dela (2021), sugerindo que a alta da comida não deve ter efeitos duradouros sobre a inflação.

Não se trata, portanto, de algo que nos leve ao descontrole inflacionário nos próximos meses, nem que justifique corrida ao armazém do MST para comprar arroz para ricos.



(Publicado 16/Set/2020)

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Reforma administrativa: é preciso querer mais (com Gabriel Nemer Tenoury)

O gasto com o funcionalismo público no Brasil é elevado e crescente, contribuindo para a dinâmica complicada da despesa governamental. Isto se deve principalmente a salários superiores aos pagos no setor privado, mesmo para pessoas de qualificação similar, fenômeno que deveria ser tratado pela reforma administrativa.

Em tempos de discussão sobre a reforma administrativa, é bom começar com uma noção do tamanho do problema. O Brasil se caracteriza por um gasto público extraordinariamente elevado em comparação a seus pares. As estimativas para 2019 apontam para despesa do governo geral (governo central, estados e municípios) pouco superior a R$ 3,5 trilhões, correspondente a 48% do PIB, patamar que coloca o país entre os 10% que mais gastam no mundo, não por coincidência socialdemocracias europeias, sem um único representante da América Latina, ou mesmo qualquer outro país dito “emergente”.

Remuneração de empregados – R$ bilhões de 2019-IV

 

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019

Governo central

291,3

289,5

279,4

285,8

289,9

296,5

285,3

303,9

308,8

311,6

Governos estaduais

296,3

308,9

319,9

349,6

353,5

356,9

340,9

343,3

348,4

354,9

Governos municipais

240,5

254,9

271,3

286,3

294,3

296,7

297,1

301,6

309,6

318,9

Governo geral

828,1

853,3

870,6

921,7

937,7

950,1

923,3

948,7

966,8

985,5

Fonte: https://www.gov.br/tesouronacional/pt-br/estatisticas-fiscais-e-planejamento/estatisticas-fiscais-do-governo-geral

 O item “remuneração de empregados”, que captura o gasto com o pessoal na ativa (salários, benefícios e contribuições previdenciárias) atingiu naquele ano R$ 985 bilhões, 28% do gasto total, equivalente a 13,3% do PIB. Entre 2010 e 2019 estas despesas cresceram ao ritmo de 2% ao ano acima da inflação, superando por larga margem a expansão do produto no mesmo período, 0,7% ao ano. 

Remuneração de empregados – % PIB

 

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

2019

Governo central

4,2

4,0

3,8

3,8

3,8

4,0

4,0

4,2

4,2

4,2

Governos estaduais

4,3

4,3

4,3

4,6

4,6

4,9

4,8

4,8

4,8

4,8

Governos municipais

3,5

3,5

3,7

3,8

3,9

4,0

4,2

4,2

4,2

4,3

Governo geral

11,9

11,8

11,8

12,1

12,3

12,9

13,0

13,2

13,2

13,3

Fonte: https://www.gov.br/tesouronacional/pt-br/estatisticas-fiscais-e-planejamento/estatisticas-fiscais-do-governo-geral

Houve, contudo, considerável diferença de desempenho entre os três níveis de governo. No caso do governo central a expansão desta despesa se deu a ritmo levemente superior ao aumento do produto, 0,8% ao ano. Já no que diz respeito aos governos subnacionais, a velocidade foi bem maior: 2,0% ao ano no caso dos estados e 3,2% ao ano nos municípios. Assim, medida como proporção do PIB, a estabilidade da despesa federal contrasta com o aumento de 0,5% do PIB entre 2010 e 2019 para estados e 0,9% do PIB para municípios.

O gasto das três esferas de governo reflete tanto o aumento do número de empregados quanto seu salário médio. Dados da PNAD contínua, disponíveis a partir de 2012 (horizonte algo mais curto que o analisado aqui) revelam que o número total de empregados no setor público cresceu ao ritmo de 0,7% ao ano entre 2012 e 2019, enquanto o salário médio real (usando como deflator o IPCA) aumentou 1,7% ao ano.

Curiosamente, apesar do crescimento do número de empregados pelo setor público, o Brasil não se caracteriza pelo elevado número de servidores: segundo a OCDE estes são pouco mais de 12% da população empregada no Brasil, contrastando com uma média de 17% dos países da OCDE, para não falar de países como França, Dinamarca e Noruega, onde servidores representam, respectivamente, 22%, 28% e 30% da população empregada.

O grande problema é que nossos servidores custam muito, como expresso pelo gasto relativo ao PIB, superior ao observado em países europeus, como mostra o estudo de Izabela Karpowicz e Mauricio Soto, conta esta que é particularmente salgada para estados e municípios.

Minas Gerais e do Rio Grande do Norte, por exemplo, gastam na faixa de 70% da sua Receita Corrente Líquida (RCL) com pessoal, segundo dados do Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais relativo ao ano de 2019, elaborado pelo Tesouro. Ainda, na versão do Boletim relativa ao ano de 2018 Minas Gerais aparecia com um gasto com pessoal de quase 80% da sua RCL.

Tal custo elevado se deve aos salários do setor público brasileiro, muito acima daqueles encontrados no setor privado. Claro, parte se explica por servidores públicos serem, na média, mais instruídos e com mais tempo de experiência no emprego do que os trabalhadores da iniciativa privada, características que impactam positivamente os salários. Mas isso não é tudo: mesmo após esses controles - bem como outras características individuais e do tipo de trabalho, ocupação, atividade etc. -, ainda há uma diferença salarial relevante. É o que a literatura chama de “prêmio salarial público-privado”.

Gustavo Gonzaga e Sergio Firpo (2010), por exemplo, estimaram, utilizando episódios de privatizações e consequentes demissões nos anos 90, um prêmio salarial público-privado da ordem de 11%, mais alto para indivíduos com maior instrução. Já Felipe Araújo (2020), usando dados de concursos públicos e comparando indivíduos que ficaram no limiar entre serem aprovados ou não, estimou um prêmio salarial da ordem de 48%. Há, também, evidências de que esse prêmio seja maior para servidores públicos federais, menor para servidores estaduais e até negativo para servidores municipais.

Quando incorporamos os benefícios previdenciários na conta, os resultados ficam ainda mais interessantes. Breno Braga, Sergio Firpo e Gustavo Gonzaga (2010) estimaram que servidores públicos têm uma vantagem em termos do Valor Presente do Contrato de Trabalho – uma medida que leva em conta salários, benefícios, FGTS, Previdência etc. - em relação aos trabalhadores da iniciativa privada de iguais características em torno de 10 a 15% para aqueles com até 7 anos de instrução e atingindo quase 30% para aqueles com 11 a 14 anos de educação.

Essa vantagem salarial dos servidores constitui um custo fiscal relevante tanto para o governo federal, quanto para os entes subnacionais. Posto de outra forma, seria possível continuar a atrair bons profissionais mesmo com uma redução do salário oferecido, ou seja, sem diminuir a provisão de serviços públicos. Tiago Cavalcanti e Marcelo Santos (2015) estimam que uma redução do prêmio salarial bem como uma harmonização das regras previdenciárias do setor público com as do setor privado seria capaz de elevar o PIB brasileiro em até 11% no longo prazo.

É claro que nem todo servidor recebe mais do que receberia na iniciativa privada. Aliás, identificar em quais setores, atividades e carreiras existe essa vantagem salarial e corrigi-la é essencial para uma boa reforma administrativa, mas ela não se esgotaria aí.

Deveria também incluir alongamento da progressão ao longo das carreiras, redução de salários iniciais e criação de métricas objetivas, específicas a cada atividade, que permitam o atrelamento da remuneração ao desempenho, bem como deve ser rígida com categorias que são amplamente privilegiadas, algumas das quais, inclusive, recebem salários acima do teto constitucional.

A manutenção do status quo implica a continuidade da dinâmica insustentável do gasto governamental, além de questões de justiça distributiva e provisão insuficiente dos serviços públicos.

Neste sentido, a proposta do governo, que, além de vaga, preserva os privilégios dos atuais servidores é insuficiente para lidar com o problema. A timidez nessa frente praticamente garante o fracasso da reforma. É preciso querer mais.



(Publicado 10/Set/2020)

“V” de vagareza

Em condições normais a indústria de transformação lideraria o ciclo econômico e a recuperação dos últimos meses seria motivo de otimismo. Contudo, a dinâmica da atual recessão é distinta, com peso bem maior do setor de serviços por razões sanitárias. Nesse contexto é difícil acreditar retorno rápido ao nível de atividade observado no final de 2019.

Os últimos números da atividade industrial foram alentadores. Depois da forte queda no bimestre março-abril, a produção da indústria de transformação cresceu de forma ininterrupta no trimestre maio-julho e, muito embora ainda se encontre algo como 6,5% abaixo dos níveis observados no começo do ano, pode atingir os níveis pré-crise nos próximos meses, mesmo que não mantenha o ritmo recente.

Em condições normais, a recuperação do setor industrial seria motivo para otimismo no que diz respeito à economia como um todo. De fato, tanto nas recessões como nas recuperações dos últimos 25 anos a indústria de transformação revelou-se tipicamente não apenas mais volátil do que o PIB, como também do que o setor de serviços, sugerindo a liderança do ciclo econômico.

Mesmo dando o desconto devido às dificuldades de mensuração de serviços, a verdade é que quase sempre a indústria cai mais rapidamente que aquele setor durante a recessão (que, por vezes, sequer se retrai no período) e também se recupera de maneira mais vigorosa. Diga-se, aliás, que a fraqueza relativa do setor industrial entre 2017 e 2019 foi um dos sintomas mais marcantes da incapacidade de a economia brasileira voltar aos patamares vigentes no começo de 2014.

Com base, portanto, nessa experiência, naturalmente saudaríamos o crescimento industrial dos últimos meses como evidência de uma recuperação em “V”, capaz de nos levar aos níveis de atividade observados no final do ano passado e começo deste ano em prazo relativamente curto.

Não vivemos, porém, em tempos normais. Embora a queda do produto industrial tenha sido mais abrupta que a dos serviços (19% contra pouco menos de 12%), há motivos para crer que – ao contrário do registrado em ciclos anteriores – a recuperação industrial dificilmente trará os serviços a reboque, pelo menos até debelarmos a crise sanitária.


De fato, as maiores quedas registradas nesse setor (comércio, transportes e outros serviços) ocorreram em segmentos em que há necessidade de interação próxima, portanto em conflito com o distanciamento social requerido para moderar a transmissão do coronavírus, ainda que muitos pareçam ter se esquecido do assunto.

Note-se, a propósito, que tais segmentos representavam no ano passado perto de 50% do valor adicionado no setor de serviços, ou cerca de 30% do PIB. Já do ponto de vista do emprego somavam em fevereiro (em termos dessazonalizados) algo como 40 milhões de postos de trabalho, ou seja, 42% da ocupação observada naquele mês (94 milhões). Isso dito, quase dois terços da redução do emprego registrada entre fevereiro e junho concentrou-se precisamente lá (7 milhões de uma perda total de 10,7 milhões).

Posto de outra forma, na ausência de vacinas ou outras formas de tratamento, o distanciamento social, ainda que enfraquecido, deve impedir o retorno rápido aos níveis de atividade prevalecentes pré-pandemia, seja pela perspectiva da produção (ou seja, o PIB), seja pela do emprego.

Espero, a bem da verdade, forte expansão do PIB no terceiro trimestre deste ano, mas que ainda nos deixaria 6-7% abaixo do registrado no final de 2019. O retorno àquele nível deve demandar, portanto, mais dois ou três trimestres, ou seja, em algum momento na primeira metade de 2021. Isto dito, mesmo considerando o baixo crescimento do produto potencial, dificilmente voltaremos à tendência pré-crise antes do final daquele ano. 

A recuperação em “V” é mais um desejo do que uma possibilidade concreta.



(Publicado 9/Set/2020)