O Banco Central alerta sobre o “limite
efetivo mínimo” para taxas de juros, aparentemente definido como um nível
abaixo do qual a redução da Selic causaria encarecimento do dólar e piora do
balanço de empresas devedoras em moeda estrangeira, ocasionando queda em
emprego e investimento, portanto da inflação. Mostramos que, pelo contrário,
como regra, o dólar mais alto melhora os balanços, incentivando a atividade por
este canal.
Na
ata
de sua última reunião, o Comitê de Política
Monetária (Copom) levantou a questão da existência de um “limite efetivo
mínimo” para a taxa básica de juros brasileira, que, concretamente, à luz da
promessa expressa no mesmo documento quanto a promover “um último ajuste, não
maior do que o atual [0,75%], para complementar o grau de estímulo necessário”,
foi identificado como 2,25% ao ano.
Embora
a ata mencione a possibilidade de reduções além desse nível serem “acompanhadas
de instabilidade nos mercados financeiros e preços de ativos”, não houve
aprofundamento maior do tema. Segundo, porém, a imprensa especializada em
vocalizar o pensamento de membros do comitê, tal limite seria alcançado “quando
os juros chegam a um patamar em que, passando dele, começam a ter efeitos
contrários ao esperado na inflação”, ou seja, a queda de
juros faria a inflação cair ainda mais, ao invés de se aproximar da meta.
O
mecanismo para o efeito Selic no País das Maravilhas se daria pela
interação entre a taxa de juros, o dólar e o balanço das empresas. A redução da
taxa básica para níveis inferiores à soma do juro americano (hoje perto de
zero) com o risco-país poderia levar ao aumento mais vigoroso do dólar, “uma
ameaça para o balanço de empresas endividadas em dólares - e um risco para a
estabilidade financeira”, o que reduziria o investimento e o emprego, trazendo
a inflação ainda mais para baixo.b
O
argumento faz sentido, exceto por não encontrar qualquer correspondência com os
dados. Ao contrário, números do próprio BC sugerem que dificilmente a
desvalorização da moeda nacional face ao dólar teria um efeito negativo generalizado
sobre as empresas brasileiras, basicamente porque estas têm, como veremos, mais
ativos do que passivos em moeda estrangeira, ou seja, como regra o dólar mais
forte melhora o balanço de tais empresas.
Os
números provêm do relatório sobre a Posição Internacional de Investimento (PII)
do país (disponível em https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/Documents/Tabelas_especiais/PII_T.xls),
que contabiliza tanto ativos de residentes contra o resto do mundo, quanto seu
passivo. Ativos e passivos, note-se, englobam não apenas instrumentos de
dívida, mas também (e crucialmente) posições relativas a investimentos em
ações, seja na categoria investimento direto (que normalmente envolve o
controle acionário de uma empresa), seja como investimento em portfólio, tipicamente
em bolsas de valores.
Para
tornar tal definição um pouco mais concreta, o PII contabiliza como passivo de
uma dada empresa não apenas quanto ela deve a credores não-residentes (dívida
externa), mas também quanto do seu capital próprio pertence a investidores não-residentes.
Este dado é essencial se lembrarmos que nos últimos 10 anos houve ingresso
(incluindo lucros reinvestidos) de pouco mais de US$ 590 bilhões no país a
título de “participação no capital”, aos quais se somam ao menos US$ 20 bilhões
de investimentos líquidos de portfólio em ações no mesmo período. Vale dizer,
houve aumento de US$ 610 bilhões nos direitos de não-residentes quanto aos
lucros gerados por empresas brasileiras.
O
PII traz não apenas uma abertura mais detalhadas quanto às fontes de financiamento
externo do país (seus passivos) e suas aplicações no exterior (ativos), mas
distingue também entre o setor público (no caso, governo geral e Banco Central)
e o setor privado (todo o resto).
É
possível, portanto, estimar não apenas o passivo externo líquido de cada setor,
mas também aproximar de maneira bastante razoável quanto deste passivo líquido
representa em termos de exposição às variações do dólar, a preocupação expressa
pelo BC com relação à inversão dos efeitos dos juros sobre a atividade e
inflação.
Do
lado dos ativos (US$ 892 bilhões), noto em primeiro lugar que não há direitos
de brasileiros contra não-residentes expressos em moeda nacional (ninguém nos
deve em reais). O setor público tinha em dezembro de 2019 ativos equivalentes a
US$ 357 bilhões, correspondentes principalmente às reservas internacionais de
propriedade do Banco Central.
Já
o setor privado detinha US$ 536 bilhões em ativos denominados em moeda
estrangeira, dos quais US$ 400 bilhões em investimentos diretos (no caso US$
373 bilhões em participação no capital e US$ 27 bilhões em operações
intercompanhia), US$ 50 bilhões em investimento de portfólio e US$ 85 bilhões
em investimentos diversos (financiamento comercial, empréstimos, moeda e
depósitos, derivativos, etc.).
Passivo
externo líquido (por setor, por moeda) – US$ bilhões
Ativos
|
Passivos
|
Passivo líquido
|
|||||||
Público
|
Privado
|
Total
|
Público
|
Privado
|
Total
|
Público
|
Privado
|
Total
|
|
Moeda doméstica
|
0,0
|
0,0
|
0,0
|
102,1
|
948,4
|
1.050,5
|
102,1
|
948,4
|
1.050,5
|
Moeda estrangeira
|
356,9
|
535,6
|
892,5
|
123,0
|
450,9
|
573,9
|
(233,9)
|
(84,7)
|
(318,6)
|
Total
|
356,9
|
535,6
|
892,5
|
225,2
|
1.399,2
|
1.624,4
|
(131,7)
|
863,7
|
731,9
|
Fonte: S&A (com dados do BCB)
O
passivo externo (US$ 1,6 trilhão) supera em muito o ativo, reflexo de anos de
déficits nas contas externas. Todavia, apenas 35% deste passivo, US$ 574
bilhões, está denominado em moeda estrangeira. Do lado do setor público temos
US$ 123 bilhões, representando dívidas em moeda estrangeira, enquanto no setor
privado este valor alcança US$ 451 bilhões (empréstimos intercompanhia,
empréstimos em geral, linhas comerciais, etc.).
A
maior parcela do passivo externo, mais de US$ 1 trilhão, corresponde a direitos
de investidores estrangeiros em moeda doméstica, dos quais US$ 102 bilhões em
títulos públicos negociados localmente. Já o passivo externo do setor privado
em moeda doméstica chega a US$ 948 bilhões, correspondente à participação no
capital de empresas nacionais (US$ 569 bilhões) e investimentos em ações (US$
379 bilhões).
Assim,
como resumido na tabela acima, tanto o setor público como o privado têm mais
ativos do que passivos externos em moeda estrangeira, respectivamente US$
234 bilhões e US$ 85 bilhões. O passivo externo líquido das empresas
brasileiras é denominado majoritariamente, portanto, em moeda nacional.
Posto
de outra forma, o setor privado liquidamente se beneficia da valorização do
dólar no que diz respeito ao seu balanço, isto é, seus ativos se valorizam mais
do que seus passivos. Ao contrário, então, do que postula o BC, mesmo que a
redução dos juros locais leve à depreciação da moeda (encarecimento do dólar),
não haveria motivo em geral para crer que isto ocasionasse a deterioração dos
balanços das empresas e, portanto, redução do investimento e emprego.
O
limite para a redução de juro é o comportamento futuro da inflação em resposta
à política monetária corrente. Enquanto houver indicação, com segurança
razoável, que a inflação permanecerá abaixo da meta (no caso, para 2021), o BC,
respeitando as regras do nosso regime monetário, deverá seguir reduzindo a taxa
básica de juros, ao menos até achar algum motivo de verdade para o tal “limite
efetivo mínimo”.
(Publicado 17/Jun/2020)