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segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Aqui se paga

Riscos crescentes de problemas quanto à capacidade de pagamento da dívida levaram ao aumento das taxas de juros mais longas na comparação com as mais curtas. Ao contrário dos países ricos, o Brasil ainda paga juros reais positivos para se endividar, ou seja, terá que voltar a produzir superávits primários.

Há algumas semanas, ao escrever sobre as mudanças no regime monetário norte-americano, analisei os fatores que influenciam a chamada “curva de rendimento”, isto é, a linha que mapeia para cada prazo (um mês, três meses, seis meses, 2 anos, etc.) a taxa de juros correspondente. Notei então que as taxas de juros mais longas refletem (em algum grau) as expectativas sobre a sequência de taxas mais curtas.

Se, por exemplo, sabemos que o juro para 1 ano é de 5% e para o ano seguinte 10%, a taxa de juros para uma aplicação por dois anos tem que ser (aproximadamente) 7,5% ao ano, pois ao final de dois anos renderá 15,5%, o mesmo que uma aplicação de 5% no primeiro ano seguida de uma de 10% no segundo ano. Se a taxa de 2 anos for inferior a 7,5% ao ano, ninguém comprará o papel, preferindo fazer a aplicação em dois momentos distintos; se for superior a 7,5% ao ano, ninguém fará a aplicação em dois passos, preferindo a taxa mais alta.

Todavia, se complicarmos um tanto o exemplo, os resultados podem se tornar ainda mais interessantes, em particular para entender o que vem ocorrendo por aqui.

Considere a possibilidade de não receber de volta o dinheiro aplicado a partir do segundo ano. Digamos que a chance de levar um calote seja 25% Assim, com 75% de chance você recebe um determinado retorno; com 25% você perde tudo (estou forçando a mão, mas, acredite, fica bem mais fácil para ilustrar o problema).

Pergunta: qual seria a taxa de juros no segundo período necessária para manter o retorno de 10% (o mesmo do exemplo acima), imaginando que a investidora só se guie pelo valor esperado da aplicação (em economês castiço, seja “neutra com relação a risco”)?

Quem fizer as contas há de concluir que a taxa de juros nesse caso teria que ser 46,67% ao ano. Com 75% de chance os R$ 105 aplicados no segundo ano se transformariam em R$ 154; com 25% de chance, virariam pó, ou seja, o valor esperado seria 0,75×154 + 0,25×0 = 115,50.

Agora a taxa de juros para dois anos não seria mais 7,5% ao ano; seria aproximadamente 24% ao ano (a média geométrica entre 5% e 46,67%). Também nesse caso com 75% de chance o investidor receberia R$ 154 ao final do segundo ano e com 25% de chance voltaria para casa com as mãos abanando.

Obviamente, para deixar a conclusão mais clara carreguei a mão tanto na chance de calote, como na recuperação de zero do valor investido. Em condições normais a chance de calote costuma ser mais baixa e o investidor em geral recupera um valor ainda positivo de sua aplicação. Se aquela for 10% e o investidor conseguir recuperar, digamos, 90 centavos para cada real investido, a taxa de juros no segundo período seria 12,7% e a taxa para aplicação por dois anos 8,8% ao ano.

A moral da história diz menos dos números em si e mais do reflexo dos riscos de não receber o dinheiro de volta sobre as taxas de juros, em particular sobre taxas de diferentes prazos, dado que a chance de calote costuma ser maior para períodos mais longos. Posto de outra forma, a existência de um risco de não receber (integralmente) a aplicação faz com que a curva de rendimentos se torne mais inclinada, isto é, que as taxas para prazos mais longos subam relativamente àquelas para aplicações mais curtas.

É evidente que algo semelhante se passa no país. O gráfico abaixo mostra a curva de rendimentos no último dia de 2019 (a linha preta) em comparação ao observado na sexta passada (a linha vermelha). Apesar da queda das taxas mais curtas (até 3 anos), influenciada pela redução expressiva da Selic, além desse horizonte houve aumento considerável da taxa de juros, culminando em diferença de 1,20 ponto percentual no juro de 10 anos hoje relativamente ao observado no final do ano passado.

Fonte: Autor com dados da ANBIMA

É bem verdade que a escolha de 31 de dezembro de 2019 como base de comparação é arbitrária. Para observar, porém, o mesmo fenômeno por outra ótica, o gráfico abaixo apresenta a diferença entre o juro de 10 anos e o juro de 3 anos ao longo do tempo desde a adoção do atual regime fiscal, qual seja, o teto para o gasto federal instituído ao final de 2016.

Nota-se que a inclinação da curva de juros, medida desta forma, aumentou significativamente no período mais recente na comparação com 2019. Em parte, diga-se, por força dos impactos da epidemia nos mercados financeiros, mas o movimento mais recente não pode ser atribuído a tal fenômeno.

Também não pode ser atribuído à expectativa de política monetária mais apertada, dado o anúncio do BC no começo de agosto acerca da adoção da “prescrição futura”, isto é, sua promessa quanto a manter a Selic estável até a inflação projetada se aproximar da meta.

Pelo contrário, resulta essencialmente do risco fiscal crescente, expresso, entre outras formas, pelas disputas sobre o orçamento de 2021, em particular as tentativas de contornar o teto de gastos para viabilizar o Renda Cidadã.

Assim, em meados do ano o Tesouro podia se financiar por 10 anos a taxas próximas a 7% ao ano; nas duas últimas semanas a taxa para 10 anos tem ficado teimosamente ao redor de 8,3% ao ano, o que corresponde a uma taxa real de juros na casa de 3,75% ao ano aproximadamente.

Não é por outro motivo que o Tesouro tem reduzido o prazo de suas emissões, quando não usando os recursos da Conta Única, deixando para o BC a tarefa de controlar a liquidez por meio de operações compromissadas.

De qualquer forma, tais desenvolvimentos deixam claras as implicações do risco da perda de controle das contas públicas: juros mais altos e dificuldades na rolagem da dívida.

Tornam também nítidos os limites que nossos keynesianos de quermesse ainda se recusam a enxergar: ao contrário das economias desenvolvidas, o juro real brasileiro ainda é elevado (para prazos mais longos), ou seja, cedo ou tarde teremos que voltar a produzir superávits primários para reverter a tendência de expansão da dívida com relação ao PIB, sob pena de perdermos de vez seu controle e, com ele, qualquer vestígio de estabilidade macroeconômica.



(Publicado 21/Out/2020)













terça-feira, 20 de outubro de 2020

No deserto

Matéria da Folha de S. Paulo finalmente fez ecoar o crescimento extraordinário do gasto público no Brasil. Aqui examinamos a questão em maior detalhe, notando em particular o aumento das despesas com benefícios sociais e remuneração de empregados, os maiores desde 2010.

A repórter pergunta ao velho rabino na saída do Muro das Lamentações:

“Para que rezava?”

“Peço a Deus todos os dias pela paz mundial e compreensão entre as pessoas”, responde.

“Formidável!”, diz a repórter, “E como se sente?”

O rabino suspira:

“Como se estivesse falando com uma parede...”

Soa melhor em inglês (e, desconfio, em iídiche – que não falo), mas a sensação do rabino é uma velha conhecida, em particular quando trato da questão do gasto público no Brasil, tema em geral solenemente ignorado pela sociedade e repleto de equívocos, alguns dos quais nitidamente intencionais.

Nesse sentido me surpreendi com matéria extensa publicada pela Folha de S. Paulo, com direito a chamada em primeira página, sobre dados do FMI acerca das finanças públicas no Brasil (e em outros países), que revelam não só a extraordinária expansão do gasto do governo em seus três níveis (federal, estadual e municipal), mas também níveis de gasto que nos colocam em posição similar à de vários países europeus.

Para falar a verdade, tive oportunidade de escrever sobre (quase) os mesmos dados há cerca de dois anos, como capítulo de um livro organizado por Affonso Pastore para o Centro de Debate de Políticas Públicas, ao qual tenho a honra de pertencer, chegando exatamente às mesmas conclusões.

Ocorre que os números apresentados pela Folha tipicamente apresentam o gasto medido como proporção do PIB, métrica em geral correta e que torna possível as comparações internacionais, como, por exemplo, o Brasil se encontrar no primeiro decil do ponto de vista de gasto público, isto é, dentre os 10% que mais gastam relativamente ao tamanho do PIB (dentre países com PIB superior a US$ 50 bilhões).

Todavia, a comparação ao longo do tempo fica algo prejudicada pelo péssimo desempenho do crescimento a partir de 2013, dada a recessão que durou do segundo trimestre de 2014 ao quarto de 2016, período em que o PIB (trimestral) encolheu nada menos do que 8,1%, herança da Nova Matriz Econômica, à época saudada pelos mesmos economistas que hoje fingem não ter qualquer relação com esse desastrado experimento.

Em particular, muito embora o PIB tenha crescido pouco mais de 6% entre 2010 (quando inicio a minha série, com base nos números divulgados pelo Tesouro Nacional) e 2019, parte da expansão do gasto como proporção do PIB se deve ao fraco crescimento desse último.

É, assim, interessante, mostrar a evolução do gasto medido em reais ajustados à inflação do período, medida pelo deflator do PIB (em frequência trimestral), conforme ilustrado pelo gráfico abaixo.

Fonte: Autor com dados da STN e IBGE

Assim, entre 2010 e 2019 o gasto total subiu de R$ 2,9 trilhões para R$ 3,5 trilhões, aumento de 21% no período, ou 2,1% ao ano. Já o gasto primário, ou seja, considerar os juros (nem, no caso, uma medida de “depreciação” do capital público) saltou de R$ 2,4 trilhões para R$ 3,0 trilhões, 23% a mais, correspondendo à expansão anual média de 2,3% ao ano.

O gráfico abaixo traz maiores detalhes sobre o comportamento do gasto primário ao longo desses 9 anos, sempre medidos a preços constantes do trimestre final de 2019. Alguns padrões saltam aos olhos.

Fonte: Autor com dados da STN e IBGE

O maior aumento se observa na conta de “benefícios sociais”, que reflete, principalmente, despesas com aposentadorias e pensões (embora inclua também programas sociais como o Bolsa-Família e o Benefício de Prestação Continuada), nada menos do que R$ 408 bilhões, expansão de 4% ao ano.

O segundo maior crescimento se refere a “remuneração de empregados”, isto é, despesas associadas a funcionários ativos (as associadas a inativos estão no grupo anterior), R$ 157 bilhões.

Para fins de comparação, as despesas com juros (que não fazem parte das primárias) se elevaram R$ 55 bilhões no período, pouco mais de um terço do aumento com a remuneração de empregados. O pagamento bruto de juros (isto é, em considerar a receita com juros do governo) atingiu R$ 496 bilhões no ano passado; benefício sociais e remuneração de empregados atingiram respectivamente R$ 1,35 trilhão e R$ 977 bilhões, ou seja, 2,7x e 2,0x maiores do que a despesa com juros.

Em contrapartida, o investimento bruto (sem dedução da “depreciação”) encolheu R$ 92 bilhões entre 2010 e 2019. Tal queda não resultou, como sempre digo, da (inexistente) austeridade fiscal, mas da decisão de privilegiar os gastos acima destacados.

Se restava qualquer dúvida acerca da extraordinária expansão do gasto do governo geral no Brasil nos últimos anos, creio que os números levantados com afinco pelo Tesouro Nacional segundo a metodologia desenvolvida pelo FMI deveriam bastar para eliminá-la.

Se é assim, por que me ainda sinto como se estivesse conversando com uma parede?



(Publicado 14/out/2020)



terça-feira, 6 de outubro de 2020

Linha do horizonte

O BC elevou em muito o volume de “operações compromissadas” ao longo do ano devido às dificuldades do Tesouro na colocação de seus papéis. Embora haja como contornar por enquanto esta questão, sem medidas de controle das contas públicas os limites da política monetária vão se tornando evidentes.

Quem segue mais de perto as contas públicas sabe que há duas formas de medir o endividamento total do governo: a metodologia empregada pelo Banco Central até 2007, similar à padronizada pelo Fundo Monetário Internacional para fins de comparação entre países, e a empregada desde então, ambas divulgadas mensalmente.

A principal diferença entre elas se refere à contabilização da dívida do Tesouro Nacional em poder do BC: a medida original inclui na dívida bruta todos os títulos do Tesouro na carteira do BC; a medida nova, ao contrário, exclui esse valor, mas contabiliza os títulos usados pelo BC nas operação de controle da liquidez da economia, conhecidas no jargão de mercado como “compromissadas”.

São assim conhecidas porque não representam venda (ou compra) definitiva de títulos públicos pelo BC, mas de venda com um compromisso de recompra em data predeterminada; ou, mais raramente, de compra com compromisso de revenda de determinada data. O objetivo dessas operações é a manutenção de um nível de reservas bancárias consistente com o objetivo de taxa juros estabelecido pelo BC.

Caso haja excesso de reservas bancárias, a taxa de referência no mercado de reservas (a Selic) tende a ficar abaixo da meta definida na reunião do Copom; nesse caso o BC vende títulos com compromisso de recompra, reduzindo o excesso de reservas. Caso haja falta de reservas, o BC compra títulos com compromisso de revenda. Vale dizer, as operações compromissadas servem para adequar a Selic ao nível almejado pelo Copom.

Isso dito, ambas as métricas de dívida costumam se mover em paralelo (abaixo à esquerda), ainda que isto não seja verdade em 100% das observações. De qualquer forma, fica claro que seguem a mesma tendência, muito embora o nível de endividamento seja tipicamente distinto: a definição mais recente aponta para nível abaixo do indicado pela metodologia mais antiga, porque as operações compromissadas são menores do que a carteira de títulos do BC. De 2007 para cá a diferença entre as duas medidas atingiu em média o equivalente a 6,7% do PIB.

Houve, todavia, aproximação vertiginosa das medidas nos últimos meses, culminando com uma redução da diferença para 3,8% do PIB em agosto, contra 12,9% do PIB em dezembro de 2019. O motivo, conforme explicitado no gráfico à direita, é o forte aumento das operações compromissadas ao longo deste ano, quando saltaram de R$ 951 bilhões em dezembro (13,1% do PIB) para R$ 1,6 trilhão (22,2% do PIB) em agosto, reflexo das dificuldades enfrentadas pelo Tesouro Nacional para colocar novos títulos no mercado.

Por um lado, o déficit do governo federal cresceu aceleradamente, tanto pela queda de receitas quanto pelo aumento de gastos, ambos em função da epidemia. Por outro, parcela da dívida venceu, como de hábito, nos primeiros 8 meses do ano. Assim, além de tomar emprestado para cobrir a diferença entre despesas e receitas, o Tesouro ainda teria que emitir novos títulos para pagar os que venceram ao longo do caminho.

Não foi o que ocorreu. Em 2020 o Tesouro Nacional precisou pagar tais compromissos por meio de saques da conta que mantém junto ao BC, a chamada Conta Única. No ano, houve saque líquido de R$ 679 bilhões, dos quais R$ 653 bilhões entre março e agosto.

Isto se explica pelo aumento do custo para se endividar no período. Apesar da forte queda da taxa Selic, acompanhada em diferentes graus pelas demais taxas de juros “curtas” (até 3 anos), as taxas de juros para horizontes mais longos subiram acentuadamente, equivalente a praticamente um ponto percentual ao ano para o horizonte de 10 anos.

A diferença entre a taxa de juros de 10 anos e a taxa de juros de 6 meses (acima à direita) se encontra próxima às máximas históricas, em torno de 6% ao ano. Esse comportamento não resulta da postura de política monetária, mas da percepção do risco fiscal devido à elevação persistente da dívida (independentemente da métrica que se escolha) num contexto marcado pela paralisia do governo, incapaz de formular uma estratégia que sinalize a reversão dessa trajetória num horizonte razoável.

Dito de outra forma, dado o risco de “calote” (inclusive por meio de inflação mais alta em horizontes mais distantes), investidores demandam uma taxa de juros mais elevada para se protegerem. Ao mesmo tempo, o Tesouro não quer se endividar a essas taxas.

A consequência do dilema é uma alteração considerável no perfil das novas emissões, com aumento da dívida tomada a juros curtos e redução da contratada a juros longos. Isso, porém, não tem sido suficiente para o conjunto de suas necessidades (tanto endividamento novo, ligado ao déficit corrente, como a “rolagem” dos títulos vencidos); daí o uso crescente da Conta Única (R$ 653 bilhões de março a agosto, como notado acima, entre financiamento do déficit e pagamentos de dívida vencida).

Todavia, tais saques elevam as reservas bancárias, exigindo que o BC adeque seu nível por meio das operações compromissadas. Ocorre que o “lastro” para tais operações vem se reduzindo a olhos vistos, de R$ 937 bilhões em dezembro de 2019 para R$ 270 bilhões em agosto, grosso modo de metade da carteira total de títulos do BC para pouco menos de 15% desse total em agosto.

A Lei 13.820 exige, contudo, que o Tesouro emita novos títulos para o BC sempre que esse “lastro” cair a menos de 4% do total da carteira (algo como R$ 75 bilhões hoje), patamar que não se encontra tão distante quanto parece.

É verdade que os números (ainda parciais) de setembro mostram uma pequena redução das compromissadas (R$ 13,6 bilhões), mas há pouco mais de R$ 100 bilhões em títulos vencendo no último trimestre de 2020 (R$ 93 bilhões em outubro apenas) e déficit ao redor de R$ 100 bilhões no mesmo período, ou seja, para evitar novas compromissadas o Tesouro terá que colocar perto de R$ 200 bilhões em títulos no trimestre.

Caso o Tesouro não o faça precisará fazer novos aportes ao BC, o que faria novamente a medida “antiga” da dívida se descolar da “nova” medida. No entanto, torna-se questão de tempo para que o jogo de gato-e-rato continue, a menos que se encontre maneira de equacionar as contas públicas ou, em sua ausência, o BC não mais consiga exercer o controle sobre a política monetária e, portanto, sobre a inflação.

O tempo se esvai, ainda mais em face da enormidade da tarefa e da paralisia do governo; não é por outro motivo que o mercado insiste em nos jogar os fatos na cara.



(Publicado 7/Out/2020)