A crise argentina, que deve permitir a
volta do peronismo ao poder, decorre de opção equivocada de Macri: entre o
ajuste e o gradualismo, escolheu o segundo e teve que enfrentar o primeiro.
Ninguém
esperava um bom desempenho de Maurício Macri nas eleições primárias argentinas
realizadas neste fim de semana, que, sem disputas internas aos partidos,
funcionaram como prévia das eleições gerais de outubro. Ainda assim, a
magnitude da derrota, com quase metade (48%) dos votos direcionados à chapa da
qual Cristina Kirchner faz parte, contra 32% recebidos pelo presidente (resultado
que sugere decisão já em primeiro turno), surpreendeu os mercados, levando a
quedas expressivas dos ativos argentinos: bolsa, títulos, bem como a moeda.
A
reação do mercado financeiro é compreensível. Ainda que Cristina Kirchner não
seja a cabeça da chapa peronista, há consenso que ela retomará na prática o
controle do governo. À luz de sua política econômica anterior, marcada por
forte intervenção nos mercados, falsificação de dados econômicos, confisco de
fundos de pensão, descontrole fiscal e inflação elevada, não há quem nutra
expectativas favoráveis para o país, o que se expressa precisamente no
comportamento negativo dos ativos financeiros.
Também
não é necessário nenhum grande esforço de imaginação para entender a irritação
da população com o presidente. Após seis trimestres de recuperação, em que a
economia se expandiu ao ritmo médio de 3,4% ao ano, o país voltou a entrar em
forte recessão: o PIB caiu nada menos do que 6,5% em comparação ao observado no
trimestre final de 2017, seu melhor momento sob Macri.
Por
outro lado, a inflação medida em 12 meses, que havia caído para 25% também no
final de 2017, voltou a acelerar, e tem permanecido na casa de 55%, apesar de
medidas heterodoxas do governo, como o congelamento de alguns preços privados e
tarifas públicas, anunciado em abril deste ano.
A
causa imediata de ambos os fenômenos (pelo menos da maior parte) é a perda de quase
60% do valor da moeda no período. Na ausência de um mercado de crédito em moeda
local, a quase totalidade do endividamento, tanto do setor público, quanto do
setor privado, é denominada em dólares; assim, a desvalorização da moeda eleva
o valor das dívidas, sufocando as empresas e o governo.
Adicionalmente,
a forte dolarização da economia faz com que o encarecimento da moeda
estrangeira seja repassado em larga medida para os preços domésticos. Isto
transparece no comportamento da inflação de bens (mais sensíveis aos preços internacionais),
que era inferior à inflação de serviços (menos sensíveis) no final de 2017 (20%
contra 34%), mas que hoje os superam por margem considerável (60% contra 50%).
Isto
dito, a questão maior é o que levou ao desempenho desastroso da moeda nos últimos
18 meses, em particular na comparação com outros países emergentes, que também
sofreram com a piora do cenário internacional, mas, em sua maioria, nada tão
dramático quanto a queda do peso argentino.
As
razões, acredito, se encontram na política econômica doméstica. Em que pese a
retórica liberal na eleição de 2015 e mesmo medidas acertadas no que dizia
respeito à liberação do câmbio e redução de subsídios, a verdade é que o
governo Macri fez muito pouco nas áreas fiscal e monetária.
Ao
assumir Macri herdou um déficit fiscal na casa de 5% do PIB, dos quais 4% do
PIB correspondiam ao balanço primário (isto é, sem considerar o pagamento de
juros). Ao contrário, porém, do que se anunciava, jamais houve um programa de
austeridade: até o final de 2017 o déficit fiscal aumentou para quase 6% do
PIB, principalmente por conta da piora do desempenho primário; apenas a partir
de meados de 2018 se observa algum esforço, mas que mantém o resultado negativo
na casa de 5% do PIB.
Já
no que se refere à política monetária, apesar da inflação já elevada, o BCRA
reduziu a taxa de juros de 2016 até o primeiro trimestre de 2018 (de 38% aa
para 27% aa), só voltando a elevá-la quando o país começou a enfrentar uma
séria crise cambial.
Vale
notar que a gênese desta crise estava relacionada à piora do ambiente
internacional, à época pelo receio de uma elevação mais forte da taxa de juros
nos EUA (enquanto hoje o problema está mais relacionado à guerra comercial),
assim como queda nos preços das commodities
a partir de meados de 2018. Todavia, a gravidade do problema na Argentina, na
comparação, por exemplo, com outros países latino-americanos (até o Brasil!),
sugere a existência de mecanismos de ampliação do choque externo que se
encontravam presentes apenas lá.
A
verdade é que o governo Macri optou pelo gradualismo para tratar dos problemas
de contas públicas e inflação, talvez na crença de manutenção do cenário
externo favorável que vigorou até o começo de 2018, talvez por suas
dificuldades política internas, talvez pela combinação de ambos. De qualquer
forma, como ficou claro, não se preparou para dias piores e agora paga o preço
desta opção. Não fez os ajustes quando teve oportunidade e teve que fazê-los
quando não lhe restava escolha.
Churchill,
de maneira profética, alertou Neville Chamberlain: “você teve que optar entre a
guerra e a desonra: escolheu a desonra e terá a guerra”. Não é difícil estender
a analogia para o caso argentino.
Antes,
porém, de chorar pela Argentina (quem resiste a Andrew Lloyd Webber e Tim
Rice?), lembremos que optamos pelo mesmo gradualismo na questão fiscal, embora
algo menos grave porque a dívida pública é denominada em moeda nacional e,
portanto, não flutua ao sabor da taxa de câmbio. Isto, porém, não nos confere o
dom da invulnerabilidade. Também enfrentamos uma janela de oportunidade modesta
para colocar a casa em ordem e a velocidade do ajuste não nos dá qualquer
margem para erro.
(Publicado 13/Ago/2019)
2 comentários:
"...a quase totalidade do endividamento, tanto do setor público, quanto do setor privado, é denominada em dólares." Diante dessa realidade, o Macri até poderia ter feito melhor do que fez, mas acho que ainda seria insuficiente.
Incrível a Argentina desde a época do Peronismo, lembra muito um cachorro correndo atras do rabo!
João Neto
http://061relogios.online
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